Cultura

Cora Coralina

Saber Viver

 

Não sei…
se a vida é curta
ou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura…
enquanto durar.

Olavo Bilac

LÍNGUA PORTUGUESA

 

Última flor do Lácio, inculta e bela,

és, a um tempo, esplendor e sepultura:

ouro nativo, que na ganga impura

a bruta mina entre os cascalhos vela…

amo-te assim, desconhecida e obscura,

tuba de alto clangor, lira singela

que tens o trom e o silvo da procela,

e o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: “meu filho”,

E em que Camões chorou no exílio amargo,

­o gênio sem ventura e o amor sem brilho!

João Cabral de Melo Neto

ÁGUA

          Água, água, água;
Água do mar e do copo;
Da sede e do navio;
Distância
Entre mim e o náufrago.

          Presença futura na nuvem
Voando sobre Nova Iorque;
No inverno
Molhando nossas almas.

          Água ausente da lua,
Das pedras, dos fantasmas
Que surpreendemos imitando
Nossos gestos aquáticos

          Água sempre pronta
Para fugir, para partir:
(Fuga no ar como os sonhos)
Água do vapor de água.

  • Comentários desativados em João Cabral de Melo Neto

Julio Cortázar

Amo-te por sobrancelhas

 

Amo-te por sobrancelhas, por cabelo, debato-te em corredores

branquíssimos onde se jogam as fontes da luz,

Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadeza de cicatriz,

vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago

e fitas que dormiam na chuva.

Não quero que tenhas uma forma, que sejas

precisamente o que vem por trás de tua mão,

porque a água, considera a água, e os leões

quando se dissolvem no açúcar da fábula,

e os gestos, essa arquitectura do nada,

acendendo as lâmpadas a meio do encontro.

Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.

pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco

com esse cabelo liso, esse sorriso.

Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho

é também a lua e o espelho,

procuro essa linha que faz tremer um homem

numa galeria de museu.

Além disso quero-te, e faz tempo e frio.

Manoel de Barros

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Julio Cortázar

BOLERO

Que vaidade imaginar
que posso te dar tudo, o amor e o futuro,
itinerários, música, joguetes.
É certo que é assim:
tudo meu te dou, é certo,
mas tudo meu não te basta
como a mim não me basta que me dês
tudo teu.

Por isso não seremos nunca
o casal perfeito, o cartão postal,
se não somos capazes de aceitar
que só na aritmética
o dois nasce do um mais um.

Por aqui um papelzinho
que somente diz:

Sempre fostes meu espelho,
quero dizer que para me ver tinha que te olhar.

Jorge Luis Borges

A UM GATO

Não são mais silenciosos os espelhos
Nem mais furtiva a aurora aventureira;
Tu és, sob a lua, essa pantera
que divisam ao longe nossos olhos.
Por obra indecifrável de um decreto
Divino, buscamos-te inutilmente;
Mais remoto que o Ganges e o poente,
É tua a solidão, teu o segredo.
O teu dorso condescende à morosa
Carícia da minha mão. Sem um ruído
Da eternidade que ora é olvido.
Aceitaste o amor desta mão receosa.
Em outro tempo estás. Tu és o dono
de um espaço cerrado como um sonho

  • Comentários desativados em Jorge Luis Borges

Federico García Lorca

CANÇÃO TONTA


Mama.
Eu quero ser de prata.

Filho,
Terás muito frio.

Mama.
Eu quero ser de água.

Filho,
Terás muito frio.

Mama.
Borda-me em teu travesseiro.

Isso sim!
Agora mesmo!

 

  • Comentários desativados em Federico García Lorca

Fernando Pessoa

O UNIVERSO NÃO É UMA IDEIA MINHA

O universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Fernando Pessoa

Quando as Crianças Brincam 

Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.