Arquivo do mês: abril 2020

O OVO

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“A mente, a liberdade, a luz e a vida/ Neste horror sufocados” (Bocage)

Uma anedota portuguesa referindo-se ao Ovo que ouvi na adolescência, ficou guardada na minha cabeça até hoje. Prende-se à incrível memória de Bocage, Manuel Maria Barbosa du Bocage, um dos poetas mais respeitados da língua portuguesa.

Conta-se que Bocage um dia encontrou-se com um amigo que lhe perguntou qual era o melhor alimento do mundo. Repentista, ele foi ágil em responder:  – “Um ovo”. Passou-se mais de um ano e eis que novamente Bocage e o mesmo amigo se deparam; aquele, antes mesmo de saudar o Poeta, indagou: -“Com quê? ”. Sem titubear, Bocage revidou: – “Com sal”…

O ovo é um alimento saudável pela facilidade em prepara-lo; representa um dos meus desjejuns prediletos, sejam fritos, cozidos e a la coque. Com um pão na chapa, é supimpa!

Entretanto, o ovo como alimento, tem sofrido avaliações diversas de nutricionistas e médicos, às vezes quase antagônicas. Esses diagnósticos levaram tempos atrás a uma quase proibição da gema pela alta concentração de colesterol; depois, anunciaram que não era nada disto, que era o colesterol “bom”, e liberaram garantindo que o ovo oferece equilíbrio em proteínas, gorduras boas e vitaminas concentradas.

O verbete dicionarizado “Ovo” é um substantivo masculino com significados na Biologia e na Zoologia, como célula resultante da fecundação e o embrião posto por muitos animais. Figuradamente é a primeira parte de alguma coisa, o princípio.

A Mitologia grega conta que Helena de Tróia nasceu de um ovo, após a relação de Zeus com a mortal Leda, que se metamorfoseava em gansa. Helena foi considerada a mulher mais linda da Grécia e teve protagonismo na Guerra de Tróia contada na Ilíada de Homero.

Um roteiro baseado na Ilíada, deu-nos um maravilhoso filme ítalo-norte-americano, “Helena de Tróia”, dirigido por Robert Wise e protagonizado pela linda Rossana Podestà.

O Ovo é usado metaforicamente como esperteza, exemplificando-se com a narrativa do “Ovo de Colombo”, algo que não se sabe fazer e depois se acha fácil ao vê-la realizada por outrem. E tem também a previsão maléfica do “Ovo da Serpente”, uma bela metáfora que Shakespeare pôs na boca de Brutus na sua tragédia “Júlio César”.

Aderindo à conspiração contra Júlio César Brutus compara-o a “um ovo de serpente, que eclodindo como sua espécie, cresceria maldosamente, razão pela qual deve ser morto na casca”.

Esta expressão tornou-se popular no mundo inteiro tempos depois, por ter sido o título de um clássico do cinema, “O Ovo da Serpente”, produzido por Dino De Laurentis e dirigido por Ingmar Bergman. O roteiro inspirou-se em Shakespeare, adaptado à realidade berlinense às vésperas da ascensão do nazismo.

As distorções sócio-políticas mostradas no filme saíram do mesmo maquinismo que levou ao mundo, em pleno século 20, os mais lamentáveis períodos de domínio de políticos messiânicos, como ocorreu com o nazismo e o comunismo.

O ninho dos ovos da serpente favorece chocar com eles a instabilidade sócio-política-moral, que gera e traz com ela todas as inseguranças sócio-políticas e a consequente depressão econômica.

No Brasil já enfrentamos as serpentes vermelhas do lulopetismo que se alimentavam do dinheiro público, assaltando vorazmente a Petrobras. Usamos o antídoto da Democracia e as afastamos quando tentavam retornar depois do impeachment do Poste de Lula, patroa do “Belias”…

Mas não tomamos uma vacina – porque, como no caso do covid-19, ainda não há vacina contra a falsidade ideológica -, então precisamos nos conscientizar e matar na casca os ovos da serpente marrom que ameaçam uma volta ao passado com a velha política do Centrão e dos picaretas do Congresso.

Pena que ainda há um grupo – pequeno, mas atuante -, que persiste em aceitar e até justificar isto. Um amigo diz que são robôs, no Twitter se referem a eles como gado, mas eu prefiro vê-los como cultuadores equivocados de personalidades.

A alucinação psicopática desta minoria leva-nos a evocar nosso epigrafado, Bocage, e um pensamento magnífico que nos legou: “Nas paixões, a razão nos desampara”.

 

 

 

 

TRAIÇÃO.COM

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“O traidor perde a confiança de quem e por quem trai”
(Ditado Árabe)

A traição à Natureza sofre punições. A desertificação, o extermínio de animais e plantas, os terremotos, os tsunamis e a peste que estamos sofrendo, tudo vem como punição.

O verbete Traição é um substantivo feminino definido como “ação de trair”. Vem do latim “traditio.onis” e também “tradere”, que tinha o significado militar de “entregar nas mãos de alguém”.

A palavra no grego, “paradídomi”, “entregar”, segundo Estudos Bíblicos, é usada por muitas vezes no Novo Testamento; cerca de cento e vinte vezes, desde Mat. 4:2 até Judas 3. Em termos jurídicos trata-se de crime que se configura pela ameaça à segurança da Pátria ou das suas instituições.

No nosso dia a dia, estamos vivendo a situação criada com a saída de Sérgio Moro do governo, e as graves denúncias dele sobre a intenção de Bolsonaro de intervir na Polícia Federal. Então assistimos os descerebrados pelo vírus do fanatismo, chamarem Moro de “comunista”; e outros, não menos cretinos, o classificarem de “petista”….

Ainda falta, até agora, que os cultuadores da personalidade de Bolsonaro, acusem Moro de traição, apesar de “traidor” ser uma marca registrada deles, para todos os que discordam do divinizado político e da familiocracia instalada no Palácio do Planalto.

A traição, na verdade, se limita majoritariamente ao exercício da política. Num dos seus memoráveis contos, o nosso Machado de Assis traz um personagem que tinha camisas bicolores em verde e vermelho de frente e avesso, cores dos partidos rivais do Município. Na medida em que apoiava quem estava no poder vestia a camisa da cor dominante…. É o que faz agora o Centrão, travestido de governista.

Há traições menos ingênuas, mas igualmente malignas…  Conta-se, por exemplo, o caso em que o editor de um jornal de país latino-americano traiu e sacrificou um repórter fotográfico por causa de um flagrante colhido por ele.

O fotógrafo captou uma expressão contraída pelo sol do ditador nacional no enterro de um chefe militar. Como o jornal era controlado por oposicionistas, o editor mudou a legenda para dar a entender que o presidente estivesse escarnecendo do defunto.

Por causa da celeuma causada e a revolta nos círculos militares, ocorreu um golpe de Estado e o ditador caiu. A ditadura civil cedeu lugar a uma ditadura militar; e o pobre profissional de imprensa morreu com atestado de óbito registrando suicídio…

Essa história reforça o preceito do grande Gabriel Garcia Marques para servir de lição aos donos de meios de comunicação que traem a vocação de muitos jornalistas levando-os a fazer propaganda política em vez de bem informar:  Escreveu Garcia:  – “A ética deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o besouro”.

Aqui não tem besouro, somente moscas…. Na cena surrealista que desenha a nossa realidade política, assistimos certa mídia visivelmente oposicionista aproveitar-se das graves denúncias do ex-ministro Sérgio Moro ajudando a ressuscitar os zumbis lulopetistas do cemitério maldito da corrupção, pedindo o impeachment de Bolsonaro.

Ocorre que Moro, ícone da luta contra a corrupção e o crime organizado, não tem culpa nisto. Credite-se sim, ao maquinismo criador de crises instalado e acionado no Planalto pelos insanos extremistas de direita, idênticos aos extremistas de esquerda.

Isto constatado, chegamos ao alerta feito pelo general Villas Boas: “Substituir uma ideologia pela outra não contribui para a elaboração de uma base de pensamento que promova soluções concretas para os problemas brasileiros”.

E, falando de traição, vale uma pergunta para quem tem cabeça para pensar: – “Qual o motivo teve Bolsonaro para tirar o chefe da Polícia Federal e pôr no seu lugar um amigo dos seus filhos implicados em investigações criminais?

 

 

 

 

COMPENSAÇÕES

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“Não é tarefa fácil dirigir os homens; empurrá-los, em compensação, é muito fácil. ”  
(Rabindranath Tagore)

Os estudiosos da História, a ciência da experiência humana, deslumbram-se em saber que enquanto os europeus estavam mergulhados na escuridão obscurantista da Idade Média, o Islã tornou-se o polo de todas as ciências, principalmente a Astronomia, a Matemática, a Medicina e a Química. Isto, sem acrescentar o domínio das artes, a arquitetura, o desenho e o urbanismo.

… mas em compensação, em livros amarelecidos, encontramos a revoltante ação do califa Omar mandando queimar a Biblioteca de Alexandria, com seus setecentos mil volumes que acumulavam o conhecimento da evolução civilizatória. Usou como argumento de que ou eram contra o Alcorão ou repetiam o que estava no livro do profeta.

Toma-se conhecimento, também, que o czar Pedro – O Grande – um excelente governante reformista modernizou a Rússia, cidades, estradas e serviços públicos, saneando a economia e criando a construção naval. Adotou o novo calendário e realizou, pela primeira vez, um censo multinacional no País, tornando-o poderoso cultural e militarmente.

… mas em compensação, vivia quase sempre embriagado, o que aguçava o seu autoritarismo; e era desprovido de qualquer humanismo. Conta-se que visitando o rei Frederico II da Dinamarca, para mostrar a submissão do seu povo, chamou um cossaco da comitiva e ordenou que se atirasse da alta Torre Redonda de Copenhague. O cossaco saudou-o e se lançou no vácuo.

A passagem de Napoleão Bonaparte capitulada pela História, mostra o filho dileto da Revolução Francesa ocupar quase toda a Europa, levando aos países os princípios democráticos e republicanos igualdade, liberdade, propriedade e tolerância religiosa. A mais valiosa de suas heranças foi o “Código Civil dos Franceses”, outorgado por ele em março de 1804. Este importante documento jurídico passou a ser conhecido, por justiça, de Código Napoleão.

… mas em compensação, Napoleão traiu a República Francesa, convocando, com cartas marcadas, um plebiscito que o reconheceu como imperador; e o Império Francês criado militarmente por ele estabeleceu nos países submissos governantes marcados pelo nepotismo e privilégios.

Lá pelo Grande Oriente, tivemos na China o generalíssimo Chiang Kai-shek, discípulo e seguidor do republicano Sun Yat-sem fundador do partido Kuomintang. Mais tarde substituiu Sun como líder nacionalista, e ocupou a Presidência da República Chinesa, contra os “Senhores da Guerra” e defendendo a cultura tradicional no chamado “movimento nova vida”. Foi marcante a sua atuação na 2ª Guerra lutando contra os japoneses que haviam invadido a China.

… mas em compensação, como político e militar, estendeu os seus anos de poder sem renovação de quadros administrativos; tornou-se ditador e impôs um regime totalitário com violenta repressão, realizando prisões e torturas arbitrárias dos seus opositores.

Ainda não se passaram dois anos da grande mobilização popular no Brasil contra a corrupção instituída nos governos de Lula e do seu poste Dilma Rousseff. Com isto, assistimos uma reviravolta política com a formação de uma ampla frente política de centro-direita que elegeu Jair Messias Bolsonaro para a presidência da República na esperança de termos um governo democrático, honesto, justo e progressista.

… mas em compensação, o eleito agregou à Presidência três complicados filhos com visível atuação nepotista. Iniciou acordos com o Centrão e distribui cargos com os picaretas do Congresso. Muito pior do que isso, atendeu aos extremistas de direita tramando contra a Lava-jato e a derrubada do ministro Sérgio Moro, o que levou o ícone da luta contra a corrupção a se demitir.

José Saramago

Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

A CAVERNA

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

 “Se o arrancarmos da caverna e o arrastarmos pela senda áspera e fragosa até à claridade do Sol, que suplício o seu por ser assim arrastado! ” (Platão)

O verbete Caverna, dicionarizado, é um substantivo feminino de origem latina cavus,i, “vazio, com material retirado” que deu em caverna,ae, cova. É uma cavidade no interior do solo rochoso; antro, furna, gruta, toca. Figuradamente, a parte mais interna ou íntima, recôndita, pouco acessível; lugar obscuro e fechado.

Em Medicina, cavidade dos pulmões devido à tuberculose e, na terminologia naval, peças curvas que partem da quilha para dar forma ao casco da embarcação.

Herdamos o mito da caverna na metáfora criada pelo filósofo grego Platão para explicar a condição de ignorância dos seres humanos e sua necessidade de sair para a luz do “mundo real”.

Sair da caverna para Platão não é coisa fácil. Trata-se de mudar a visão das coisas e das convicções arraigadas; implica em sofrer a dor da perda, compensada pelo impulso de se libertar…

As cavernas foram a habitação mais comum no período de evolução do neandertal para o homo sapiens, e chegaram à civilização trazendo um misterioso fascínio dos seres humanos vendo-as em várias religiões como cenário do nascimento de deuses.

Registra-se assim, antes, muito antes de Platão, que as grandes religiões antigas santificaram as cavernas adorando nelas seus deuses Atis, Baal, Isis e Osiris; em Creta havia um túmulo de Zeus “nascido numa gruta, fornecedor da comida da comunhão, do pão e do vinho, deus da morte e da ressurreição”.

Na conquista europeia das Américas encontrou-se os astecas, maias e incas, do outro lado do Atlântico, cultuando também as cavernas como santuários dos deuses.

Tivemos filmada “A caverna do Dragão”, uma série de animação do século passado produzida em 27 episódios. Como o final foi meio conturbado, o desenhista

Reinaldo Rocha produziu o 28º episódio em quadrinhos, intitulada “Réquiem”.

Foi uma proposta de mudança para concluir o enredo, coisa interessante porque, como disse alguém, “triste não é mudar de ideia, mas sim não ter ideias para mudar”.

Se ninguém não sai da caverna jamais verá a luz…. Ver a luz à primeira vista, porém, ofusca, mas fascina ao encontrar a verdade e deixar na escuridão as sombras da ignorância.

É difícil, porém, libertar certas pessoas, escravas das paixões. Estas, como disse Sócrates, não reconhecem que foi pelas trevas que teve os olhos magnetizados e desejam voltar para a caverna…. Isto exige uma reflexão sobre como quebrar as algemas dessas vítimas da obscuridade, ainda prisioneiros do complexo da caverna.

A “caverna” também entra no dia-a-dia da politicagem no Brasil: Há quem lembre a gruta dos 40 ladrões e, por ignorância, comparam o super meliante Lula da Silva com Ali-Babá, porque não leram o conto das “Mil e uma Noites”. Na verdade, Ali-Babá é o povo brasileiro, o Pelegão é o chefe da quadrilha…

A história conta que: “Um trabalhador amedrontado, assistiu escondido uma reunião de 40 ladrões, ouviu o chefe deles usar as palavras mágicas “Abre-te Sésamo”, e uma cova se abriu. Quando o bando saiu, Ali foi até lá e no seu interior vê um tesouro; recolhe uma parte razoável e vai para casa.

“Com o que trouxe, provocou a inveja do irmão e ensinou-lhe como fazer. Indo à caverna, o irmão com mesquinhez, quis pegar tudo o que viu terminando sendo surpreendido, preso e torturado. Dedurou o irmão e, embora tenha delatado, foi morto pelos bandidos.

“A quadrilha saiu em busca de Ali escondidos em barris para se vingar; ele, porém preparou uma armadilha e abortou o ataque jogando óleo fervente nos barris onde estavam os ladrões, matando-os cozidos…”

Lembrando o conto, ouço uma voz cavernosa ecoando: – “Antigamente o óleo fervente era uma espécie de Lava-Jato…”.

 

 

Federico García Lorca

GAZEL DO AMOR DESESPERADO

 

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
inda que um sol de lacraus me coma a fronte.

Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridade.

Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.

Federico García Lorca, in ‘Divã do Tamarit’
Tradução de Oscar Mendes


Federico García Lorca
( 05/06/1898 —  19/08/1936)

 

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Raimundo Correia

Vai-se a primeira pomba despertada…
Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada.

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.

Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas.

(Trecho de A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade).

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REMÉDIOS

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

Uma coletânea de pensamentos é uma farmácia moral onde se encontram remédios para todos os males” (Voltaire)

Quando eu e minha mulher nos casamos, mantivemos o hábito de visitar uns tios para filar os lautos almoços que ofereciam nos domingos aos parentes e amigos. Ao sentar à mesa, ele, casado com a irmã da minha mãe, colocava à sua frente um monte de pílulas e comprimidos que ia tomando enquanto comia.

Quando saíamos de lá morríamos de rir lembrando este fato; e fomos castigados pela natureza do envelhecimento. Hoje, tomo no mínimo seis comprimidos e cápsulas, e ela outro tanto…

Confesso que houve um tempo que eu chamava os médicos de “máfia de branco” e não escondia o desprezo pelos remédios. Quando comecei a precisar deles fiz as pazes com as “bolinhas” a ponto de até me automedicar…

Através das variadas espécies de Medicina temos terapias praticadas através de uma imensa gama de drogas e métodos de cura. Para dormir, para acordar, antiácidos, antibióticos, ansiolíticos, anti-infecciosos, antidepressivos, corticoides, etc.

Ao entrarmos na Medicina Alternativa, encontramos os velhos ensinamentos homeopáticos do doutor Christian Friedrich Samuel Hahnemann, baseados no princípio latino “similia similibus curantur”, “semelhante pelo semelhante se cura”.

A História deste ramo da Medicina nos conta que quando o doutor Samuel Hahnemann pesquisava a farmacologia do quinina, desconfiou da explicação recebida sobre a ação deste medicamento usado no Sudoeste Asiático para a malária, enfermidade tropical que intercala períodos de febre e aparente cura.

Pelo notável amor pela ciência médica, Hahnemann assumiu-se de cobaia e tomou o quinina apresentando os sintomas da malária. Depois, pediu a médicos e estudantes do seu círculo de amizades que mesmo sadios usassem o remédio, e eles também apresentaram os mesmos sintomas; concluiu, então, que qualquer substância capaz de causar sintomas de uma doença em pessoas saudáveis, é capaz de curar uma pessoa doente.

Outras vertentes medicinais se apresentam como a Fitoterapia, de que já tratei em dois artigos anteriores, uma benéfica herança do antigo Império Inca e dos indígenas sul-americanos. Os medicamentos extraídos da floresta são usados até hoje com bastante eficácia entre os ditos civilizados…

Temos, também, vinda do Grande Oriente, a chamada Medicina Oriental utilizando além dos produtos fitoterápicos, métodos terapêuticos como acupuntura e dietética, aplicadas para estabelecer o equilíbrio do organismo, conforme ensinam as milenares culturas da China, Coreia e Japão.

Estudando por curiosidade a diversidade de diagnósticos e receituário médico, procurei saber o que é a Aromaterapia, e as primeiras pessoas a quem indaguei ensinaram-me que se trata de um ramo da Fitoterapia. A palavra “aromaterapia” vem dos termos gregos “aroma” = odor agradável + “therapeia”, seja, “tratamento pelo cheiro”.

Em concordância com os seus adeptos – são muitos, e proliferam cursos, lojas especializadas e até Ongs -, a terapia por aspiração de odores agradáveis ajuda a combater ansiedade, dor, depressão, estresse e insônia; e do ponto de vista holístico, atua pelo equilíbrio físico, mental, emocional e espiritual.

A História registra que Montaigne (Michel Eyquem de Montaigne) jurista, político, filósofo, e extraordinário ensaísta, foi pioneiro ao sugerir que os médicos usassem aromas como terapia, dizendo que os perfumes influem e transformam o ânimo e o humor.

… E no anedotário, conta-se que Montaigne quando antecipava para um amigo trechos do seu ensaio sobre perfumes e estranhando o silêncio do interlocutor, encarou-o e viu que ele estava de olhos fechados; pensou que ele havia adormecido, mas se enganou:  o amigo, alérgico a odores, desmaiara só em ouvir falar de perfumes…

Vinícius de Moraes

A Transfiguração pela poesia 

Creio firmemente que o confinamento em si mesmo, imposto a toda uma legião de criaturas pela guerra, é dinamite se acumulando no subsolo das almas para as explosões da paz.

No seio mesmo da tragédia sinto o fermento da meditação crescer. Não tenho dúvida de que poderosos artistas surgirão das ruínas ainda não reconstruídas do mundo para cantar e contar a beleza e reconstruí-lo livre.

Pois na luta onde todos foram soldados – a minoria nos campos de batalha, a maioria nas solidões do próprio eu, lutando a favor da liberdade e contra ela, a favor da vida e contra ela – os sobreviventes, de corpo e espírito, e os que aguardaram em lágrimas a sua chegada imprevisível, hão de se estreitar num abraço tão apertado que nem a morte os poderá separar.

E o pranto que chorarem juntos há de ser água para lavar dos corações o ódio e das inteligências o mal-entendido.

→Excerto da Poesia de Vinícius de Moraes “A Transfiguração pela poesia”.

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