Arquivo do mês: maio 2021

CINISMO

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“Há almas cuja treva é maior que a noite, consciências cuja lama é maior que a de todos os pântanos da terra” (Albino Forjaz Sampaio)

O Cinismo, como corrente filosófica foi criado por um dos discípulos de Sócrates, Antístenes, que dedicou a vida pregando que o valor da pessoa humana não é medido pelos bens que possui, mas pelo seu altruísmo.

A palavra “Cinismo” no grego antigo, “kynismós” significa “como um cão” mostrando a maneira espontânea e natural dos adeptos desta filosofia, os Cínicos. Dicionarizado, o verbete Cínico é substantivo e adjetivo; aquele que despreza as tradições, afronta as convenções e desacata as regras sociais correntes.

Através dos tempos, a linguagem é domesticada pela ordem constituída passando por transformações em favor da mentalidade dominante; e assim ocorreu com a inversão do sentido das palavras “Cinismo” e de “Cínico”, depreciadas no seu significado original; “Cínico” passou a ser tratado como desavergonhado, descarado, devasso, indecente, libertino e até sem-vergonha!

Como o poder político não passa de segurança do shopping da Economia, não permite uma oposição ao seu sistema. Reprime quem lhe despreza, lhe afronta e desacata. Os seus agentes, entretanto, são de um cinismo ímpar – o da linguagem corrente, do “sem-vergonha” -, pela falta de caráter e a sofreguidão pelo acúmulo de riquezas, seja qual for o modo de adquiri-las.

No Brasil, os políticos em geral revoltam a opinião geral pela maneira inconveniente de usar a coisa pública, e nisto é excessivo o cinismo de alguns deles. Agora mesmo, ocupando o poder, um grupo de sem-caracteres é comandado por um patife, capaz de gastar R$ 1.790.003,92 – em plena pandemia, por quatro dias de “descanso”, de 8 a 17 de fevereiro.

Este velhaco, o presidente Bolsonaro, se exibiu outro dia nas redes sociais mostrando uma picanha de boi da raça wagyu, de origem japonesa, vendida a R$ 1.799,99 o quilo, no churrasco que ofereceu à sua patota.

Isto revolta os brasileiros desejosos de um País sem privilégios, justo, pacífico e progressista, mas satisfaz a ignorância gulosa pelo néctar de mitos camaleônicos. O excesso de cinismo é pandêmico.

Como um vírus, a sem-vergonhice se espalhou pelo Brasil, por todas as classes sociais: adotaram-no líderes comunitários, cooptou padres e pastores politiqueiros, entrou nas atas dos clubes de militares de pijama, encantou os carreiristas políticos e até assumiu uma forma “garantista” nos tribunais superiores….

Neste cenário de luzidia insensatez que vivemos, se sobressai Jair Bolsonaro, que de deputado medíocre admirador do golpista e ditador venezuelano Hugo Chávez, enveredou pelo sindicalismo fardado, tornou-se “comissário” do revanchismo militar, e, com um discurso contra a corrupção, se elegeu presidente da República.

Após as descobertas do filho mordedor de “rachadinhas” e dos cheques inexplicáveis passados para a mulher, casou a mentira com o cinismo e passou a blasfemar contra a Lava Jato, rompendo com o caçador de corruptos, Sérgio Moro, para intervir no Coaf e na PF, e blindar seus bandidos de estimação.

Então, a nova versão do cinismo tornou-se rotina entre os que proclamam a honestidade do Presidente, até mesmo quando ele apoia as ações suspeitas do ministro boiadeiro Ricardo Salles, advogado de madeireiros contrabandistas.

O otimismo cínico dos cultuadores da personalidade de Bolsonaro aplaude a traição das promessas eleitorais dele, que quer se reeleger com as mesmas promessas. Pior ainda, cega para a sua loucura em criar um “gabinete paralelo” para executar uma política necrófila.

Este cinismo deplorável se expõe comparando-se as ações do governo federal diante da pandemia letal:  isto se vê claramente com Bolsonaro, que levou três meses para responder a oferta das vacinas da Pfizer, e apenas três minutos para sediar a Copa América no Brasil, uma ameaça de risco de transmissões da covid-19.

Se o cinismo da politicalha servisse à Nação como atende ao negacionismo, a política necrófila não seria exaltada, e as famílias de meio milhão de brasileiros mortos não derramariam lágrimas.

Uma coisa é certa: as viúvas, viúvos, pais, irmãos e órfãos dos caídos pelo genocídio promovido por Bolsonaro jamais se tornarão cínicos como os seguidores dele….

 

 

 

 

Gabriela Mistral

O PENSADOR DE RODIN


Apoiando na mão rugosa o queixo fino,
O Pensador reflete que é carne sem defesa:
Carne da cova, nua em face do destino,
Carne que odeia a morte e tremeu de beleza.

E tremeu de amor; toda a primavera ardente,
E hoje, no outono, afoga-se em verdade e tristeza.
O havemos de morrer passa-lhe pela mente
Quando no bronze cai a noturna escureza.

E na angústia seus músculos se fendem sofredores.
Sua carne sulcada enche-se de terrores,
Fende-se, como a folha de outono, ao Senhor forte

Que o reclama nos bronzes. Não há árvores torcida
Pelo sol na planície, nem leão de anca ferida,
Crispados como este homem que medita na morte.

Jorge Luis Borges

As Coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a desvanecida
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Servem-nos, como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que partimos em um momento.

  • Comentários desativados em Jorge Luis Borges

CHEIRO

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“Não se pode trabalhar num esgoto sem cheirar a esgoto” (José Saramago)

Todas as pessoas que conheço estimulam as lembranças do passado pelos sentidos. São paisagens, olfato, sabores, sons e texturas trazem recordações a muito enterradas no nosso subconsciente; e, para mim, o mais excitante dentre os sentidos é o olfato.

São incríveis os cheiros que me trazem a presença de entes queridos que se foram. De vez em quando, andando pelas ruas passo por uma senhora usando o perfume que minha mãe usava, “Cuir de Russie” de Chanel, trazendo-me imensa tristeza pela ausência dela da minha vida.

“Cheiro” é um substantivo masculino de origem discutida, sendo para mim a mais próxima é a derivada do provençal, “cheiriar” significando lavar com energia as mãos para tirar odores deixados pelo contato com animais, corpos humanos, plantas e objetos produzidos por matérias químicas.

Com muitas variantes, “Cheiro” exprime concretamente a impressão originária do olfato, e o verbo derivado “cheirar” leva até ao uso de cocaína…. Figurativamente, lembra o carinho do fungar no pescoço da pessoa amada, e realça a odorífera poesia de Shakespeare: – “Se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume”.

“Cheiro” também expressa metaforicamente a suspeita de algo que aconteceu ou está por acontecer. É o que sentimos na política brasileira, com o cheiro de mofo, de tinta descascada e musgo de muro carcomido saído do encontro entre Fernando Henrique e Lula; do mesmo modo como o cheiro de enxofre expelido pelo demônio que mora nos ouvidos de Bolsonaro. Nesses exemplos entram os antônimos catinga, fedor, fétido, pestilência….

Embora sem ser investigador de polícia ou ter o faro apurado de um perdigueiro, senti forte cheiro de corrupção quando no ano passado assisti a reunião ministerial de 22 de abril, com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, propondo que o governo aproveitasse a pandemia para passar a “boiada”….

Esse “aboio” do Ministro para tanger o gado, foi uma alegoria política visando aproveitar as atenções voltadas para a pandemia e intervir na legislação, mudar as portarias e as regras em defesa do Meio Ambiente, em favorecimento dos desmatadores, garimpeiros e madeireiros ilegais.

O gado humano que apoia bovinamente o Governo Bolsonaro ignorou o fato, por motivos óbvios, e o escondeu sob o esterco da cumplicidade; o mesmo não aconteceu com a manada dos brasileiros patriotas que divulgaram, combateram e não esqueceram a proposta obscena, para não dizer criminosa.

Agora, esta impostura emergiu no noticiário midiático:  Autoridades norte-americanas do Governo Biden apreenderam uma carga ilegal de madeira amazônica e alertaram sobre irregularidades nestes carregamentos para os Estados Unidos. E assim confirmou que a Polícia Federal agiu corretamente ao deflagrar a Operação Akuanduba.

Esta ação foi criada para apurar crimes de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e irregularidades para facilitar o contrabando com a participação suspeitosa de agentes públicos.

Em consequência, veio a seguir, acionada pelo superintendente da PF no Amazonas, delegado Alexandre Saraiva, a Operação Handroanthus, que apreendeu 213 mil metros cúbicos de madeira ilegal na divisa entre Amazonas e Pará no fim do ano passado, uma delinquência que foi defendida pelo ministro Ricardo Salles.

No contexto deste flagrante criminoso, a Polícia Federal abriu investigação sobre a intervenção protetora de Salles e funcionários do Ibama à ilegalidade; mas o Governo Bolsonaro, em vez de combater a corrupção e punir os infratores, destituiu Saraiva da Superintendência da PF….

Nesta circunstância, exala no ar um ativo cheiro de jabaculê, pixuleco, propina e suborno, com o ministro Salles e sua equipe suspeitos de apoiar o contrabando e perseguir agentes públicos. Só quem perdeu o olfato por causa da covid-19 não sente este miasma, e se junta aos que estão sufocados pelo bafio do fanatismo defendendo seus bandidos de estimação.

 

 

 

T. S. Eliot

Quatro quartetos – n. 1

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que nuca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisíveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos com eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente, contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.

SUBSTANTIVOS

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“O substantivo em sua majestade, o adjetivo, roupa transparente que o veste, e o verbo, o anjo que lhe dá impulso” (Baudelaire)

Os auto-assumidos conservadores e moralistas distribuem toneladas de pareceres recomendando austeridade e bom senso, mas não prescrevem sequer poucas gramas de rejeição à hipocrisia e a mentira. Vemos isto no cardápio diário das redes sociais, do café-da-manhã à última refeição do dia….

Parece-me a pregação do bom senso pelos puritanos do século 21 pelo bom senso ecoa apenas na “região inexplorada” (“the indiscovered country”) a que se refere Shakespeare no enredado terceiro capítulo de Hamlet; ou, abrasileirando, discurso às pedras do deserto, como escreveu Plínio Salgado.

Não cola. Porque faltam exemplos dos “andares de cima”; palavras, o vento as leva, enquanto o proceder correto desperta admiração e estimula a imitar; impõe respeito e se constitui em modelo.

O cenário contraditório é amplo; político, religioso e social. Um palco aonde se gasta hectolitros de substantivos qualificativos para tingir uma postura de momento. São muitas as cores dos “ismos”; vão das nuances do anarquismo ao absolutismo. Nenhum deles, porém, pior do que o negacionismo, que estimula a cavalgada de grupos obscurantistas com a bandeira da ignorância.

Se estudassem, veriam que as ciências astronômicas, físicas, matemáticas e químicas vêm da aurora da História da Antiguidade. Engatinharam, arrastaram-se, cambalearam; mas de dois mil anos para cá, só um néscio se opõe a conceitos que podem ser provados cientificamente.

Entretanto, temos até dias de hoje idiotas defendendo que a Terra é plana, séculos depois de Galileu enterrar o geocentrismo e, 400 anos mais tarde, Iuri Gagarin ter visto e fotografado o globo terrestre exclamando: -“A Terra é azul! ”.

Vemos em plena pandemia do novo coronavírus a cambada negacionista ignorar a Ciência, rejeitando conceitos apoiados no consenso científico internacional; monta na égua da desinformação para se contrapor aos conceitos médicos de prevenção contra a covid-19, de evitar aglomerações, usar máscara e na medida do possível, fazer o isolamento social.

No Brasil, estas falanges imbecilizadas pelo fanatismo tentaram sob o comando do próprio presidente da República, boicotar a vacinação. Assistimos Bolsonaro falar de público que “quem tomasse a vacina poderia virar jacaré”, “que cresceria barba nas mulheres” e “os homens iriam falar fino”…. O filho Eduardo, não menos idiota, ao ser aconselhado a se resguardar, mandou que “enfiassem a máscara no rabo” em vídeo divulgado nas redes sociais.

Tal rejeição à Ciência Médica e desrespeito ao povo brasileiro, merece, sem dúvida, nomear com substantivos adjetivados o estado patológico da familiocracia que ocupa o poder.  Incentiva-nos a empregar substantivos comuns, figurativos ou temáticos, para classificar a estupidez do seu negacionismo.

E para piorar o quadro da política necrófila do Governo Bolsonaro, ficou instituída a Mentira, a do Presidente, sempre; e por espírito de imitação daqueles que o cercam perfilados, como o ex-ministro Eduardo Pazuello. Negando que a verdade é um símbolo da honra militar, mentiu na CPI da Covid, diante de documentos apresentados.

O substantivo feminino Mentira, ato de mentir, tem etimologia latina mentīre, remetendo ao latim clássico mendacium, ou, como querem outros, mentionica, do latim tardio.

Adotou-o Pazuello à frente do Ministério da Saúde, de prontidão diante do “chefe de Estado”, “chefe de Governo”, “comandante-chefe das FFAA” e “chefe da Administração Federal”; não esquecendo de que o Capitão-Generalíssimo, quando diz besteira, fala como “agente político”…. Lembrou-me nazistas em Nuremberg.

Diante disto, o perfil do General é o de que, após comandar a batalha contra a pandemia, deixou o Ministério resumiu em duas palavras a sua passagem por lá: “Omissão cumprida”….

Thomas Hardy

Os Bois

Meia noite. Véspera de Natal.

“Ajoelhados estão todos,”

Dissera um ancião enquanto sentados estávamos

Ao pé das cinzas na paz de uma lareira.

Meigas e maviosas criaturas vislumbrávamos

Tendo por morada um redil de palha.

Tampouco a nenhum de nós sucedeu

Duvidar de que ali ajoelhados estavam.

Poucos um tão belo quadro imaginariam fantasiar

Naqueles tempos! Não eu, todavia.

Se por acaso uma pessoa falasse à Véspera de Natal

“Venham ver os bois ajoelhados

Ali, no vale, naquele solitário pátio da fazenda

Tão familiar aos dias de nossa infância,”

Certo que com ela iria pela escuridão

Na esperança de um milagre acontecer.

(Trad. de Cunha e Silva Filho)

Rudyard Kipling

Se
Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar –sem que a isso só te atires,
De sonhar –sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: “Persiste!”;
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais –tu serás um homem, ó meu filho!

VELHOS

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“O tempo é um ponto de vista. Velho é quem é um dia mais velho que a gente…” (Mario Quintana)

A intenção maldosa de ofender às vezes sai pelo contrário; por três vezes nesta semana me chamaram de “velho” nas redes sociais, mandando-me recolher, e, em vez de me irritar, senti-me elogiado e apenas registrei a falta de educação.

Falta de educação é uma conduta de filho de chocadeira, que não teve mãe nem pai para ensinar convivência com outrem. Quando menino, meus pais educaram-me para respeitar crianças, mulheres e velhos; e quem não os tratar assim sofre uma deformidade moral.

Deixando de lado o sentimento doentio dos mal-educados, digo-lhes que o meu recolhimento, é inaceitável, quando vejo no governo dezenas de militares da minha geração defendendo o negativismo; assim, para fazer-lhes oposição de igual para igual (exceto pelos altos salários acumulados deles) não renuncio à participação na rede social.

Para escrever este artigo, refleti que não sou o único exemplo na exclusão etária dos que querem impedir a livre expressão do pensamento nas redes sociais; são centenas de internautas idosos, expondo experiências, mostrando cultura e polemizando em defesa das opiniões próprias, e como eu, sofrendo também discriminações.

Lembrei-me de uma historinha que pesquei entre muitas que coleciono, com a artista francesa Mistinguett, cantora que brilhou nos palcos e nos filmes, deixando a sua lembrança gravada na memória de várias gerações.

O antigo empresário dela visitou-a e revelou que estava trabalhando numa peça e pensava em aproveitar uma atriz idosa num monólogo em que expõe as experiências acumuladas para uma jovem que lhe pediu conselhos.

– “Este papel me entusiasma”, falou Mistinguett, que tinha 81 anos na época. – “É excelente esta ideia”, e perguntou a seguir: – “… E quem vai protagonizar a velha? ”.

É isto. O artista que é artista pode atuar como qualquer personagem, seja de que idade for; é como os jornalistas do meu tempo, cuja formação humanista e cultura acumulada, lhes permite assumir qualquer pauta, seja da sua especialidade ou fora do contexto.

Um bom ator aprende a interpretar todos os tipos de papéis, do mesmo modo como um jornalista vocacionado conduz uma matéria sobre qualquer assunto. É assim que no meu caso particular procuro fazer mesmo amadoristicamente, desgostando os fanáticos cultuadores de personalidade.

Se lhes aborreço e instigo o ódio enfermiço do fanatismo político ou religioso, agrado em contraposição um grande número de seguidores e jovens leitores dos meus artigos. Na minha atuação como internauta, sigo uma lição de Goethe que me acompanha desde que entrei no Twitter: – “Quando se é velho, é preciso ser mais ativo do que quando jovem”.

É talvez por causa da minha atividade aos 87 anos de idade que eu tenho incomodado os recém-chegados à rede social sem formação adequada, cujo único argumento numa polêmica é a intolerância. São palermas que se fanatizam pela política, sem pensamento próprio, levados a seguir bovinamente lideranças demagógicas, juntando-se a mercenários que se põem a serviço do poder atuando fraudulentamente por dinheiro.

Assim denunciaram os influencers que receberam verbas do Governo Bolsonaro para defender o tratamento precoce; e tem outros que ainda continuam elogiando remédio contra piolho para curar a covid-19, por vergonha de admitir que venderam a consciência.

Encontro numa ilação sobre a velhice atuante, muitos que defendem suas ideias com destemor, levando-me a reconhecer e aplaudir esses que envelheceram com dignidade. Da minha parte, valho-me de Paulinho da Viola,navegando como “um velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar! ”

Lord Byron

Uma taça feita de um crânio humano

(Tradução de Castro Alves)

Não recues! De mim não foi-se o espírito…
Em mim verás – pobre caveira fria –
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!… que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais vale guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
– Taça – levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do réptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
…Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida
Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p’ra alguma coisa!…