Poesias

Carlos Drummond de Andrade

Os Ombros Suportam o Mundo

 

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

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Cora Coralina

Saber Viver

 

Não sei…
se a vida é curta
ou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura…
enquanto durar.

Olavo Bilac

LÍNGUA PORTUGUESA

 

Última flor do Lácio, inculta e bela,

és, a um tempo, esplendor e sepultura:

ouro nativo, que na ganga impura

a bruta mina entre os cascalhos vela…

amo-te assim, desconhecida e obscura,

tuba de alto clangor, lira singela

que tens o trom e o silvo da procela,

e o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: “meu filho”,

E em que Camões chorou no exílio amargo,

­o gênio sem ventura e o amor sem brilho!

João Cabral de Melo Neto

ÁGUA

          Água, água, água;
Água do mar e do copo;
Da sede e do navio;
Distância
Entre mim e o náufrago.

          Presença futura na nuvem
Voando sobre Nova Iorque;
No inverno
Molhando nossas almas.

          Água ausente da lua,
Das pedras, dos fantasmas
Que surpreendemos imitando
Nossos gestos aquáticos

          Água sempre pronta
Para fugir, para partir:
(Fuga no ar como os sonhos)
Água do vapor de água.

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Julio Cortázar

Amo-te por sobrancelhas

 

Amo-te por sobrancelhas, por cabelo, debato-te em corredores

branquíssimos onde se jogam as fontes da luz,

Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadeza de cicatriz,

vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago

e fitas que dormiam na chuva.

Não quero que tenhas uma forma, que sejas

precisamente o que vem por trás de tua mão,

porque a água, considera a água, e os leões

quando se dissolvem no açúcar da fábula,

e os gestos, essa arquitectura do nada,

acendendo as lâmpadas a meio do encontro.

Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.

pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco

com esse cabelo liso, esse sorriso.

Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho

é também a lua e o espelho,

procuro essa linha que faz tremer um homem

numa galeria de museu.

Além disso quero-te, e faz tempo e frio.

Augusto dos Anjos

A Esperança

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro – avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!

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Victor Heringer

Oração

Olhai por nós, pecadores; estamos cansados.
As flanelinhas, os endomingados nos museus,
os cirurgiões oftalmologistas, os estrábicos,
os daltônicos, os heterocrômicos, os cineastas,
os olheiros do futebol, os espiões como as mulheres
em trocadores de lojas, os que são
deleitam em testemunhar o coito alheio,
os glaucomatosos, os que não choram embaçado,

[…]

Os que estão de olhos abertos, os que morrem
de olhos abertos, os que matam de olhos abertos,
os que são vistos, os voadores e os que têm o diabo,
os que andam em montanhas-russas sem fechar os olhos ao medo,
os espiões, os cobiçadores da mulher do próximo
e os esguelhas, os desvendados.
Nós estamos cansados. Aqui tudo se vê,
mas todos os gostos meteorologias;
para cima, toda conversa é de elevador.

 

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Bertolt Brecht

NECESSIDADE DA PROPAGANDA (leia-se “Marketing”)

1

É possível que no nosso país nem tudo ande como deveria andar.
Mas ninguém pode duvidar de que a propaganda é boa.
Até os famintos precisam reconhecer
Que o ministro do Abastecimento fala bem.

2

Quando o regime mandou num único dia
Trucidar milhares de pessoas, sem
Inquérito nem sentença judicial
O ministro da Propaganda elogiou a infinita paciência do Führer
Que tanto tempo esperou pela carnificina
E cumulou os canalhas com bens e postos de honra
Num discurso tão magistral, que
Nesse dia não só os parentes das vítimas
Como até mesmo os algozes choraram.

3

E quando num outro dia o maior dirigível do Reich
Se consumiu em chamas porque o encheram com gás inflamável
De modo a economizar o não-inflamável para fins militares
O ministro do Transporte Aéreo prometeu diante dos caixões dos mortos
Que não iria se deixar abater, no que
Arrancou aplausos efusivos. Até de dentro dos caixões
Dizem que as palmas retumbaram.

4

E que primorosa é a propaganda
Para o lixo e para o livro do Führer!
Qualquer um é levado a ler o livro do Führer
Onde quer que este se encontre jogado.
Para difundir o colecionismo de trastes, o poderoso Göring
Declarou-se o maior colecionador de trastes de todos os tempos e
Para abrigar os trastes, construiu no meio da capital do Reich
Um palácio que é
Ele próprio tão grande quanto uma cidade.

5

Um bom propagandista
Faz de um montão de estrume um lugar de passeio.
Quando não há gordura, ele demonstra
Que uma compleição magra nos embeleza.
Milhares que o escutam discursar sobre rodovias
Alegram-se como se possuíssem automóveis.
Nos túmulos dos que tombaram ou morreram de fome
Ele planta loureiros. Mas bem antes de se chegar a isso
Falava da paz quando os canhões desfilavam ao lado.

6

Somente através de uma propaganda excepcional
Foi possível convencer milhões
De que o incremento das forças armadas assinalava uma obra de paz
Que cada novo tanque era uma pombinha da paz
E cada novo regimento, uma nova demonstração
De amor à paz.

7

Todavia: ainda que se alcance muito com bons discursos
Não se alcança tudo. Escutou-se
Muitos dizerem: que pena
Que a palavra carne não sacie por si só, e pena
Que a palavra roupa aqueça tão pouco.
Quando o ministro do Planejamento tece loas ao valioso novo fio têxtil
Não pode chover, senão
Os ouvintes vão ser pegos de calça curta.

8

E mais uma coisa nos deixa apreensivos
Sobre os propósitos da propaganda: quanto mais propaganda há no nosso país
Menos há no resto do mundo.

1937

Trad.: Andre Vallias

Samuel Taylor Coleridge

Kubla Khan

Em Xanadu, fez Kubla Khan
Construir um domo de prazer:
Onde Alph, rio sacro, em seu afã,
Por grutas amplas e anciãs,
         Ia a um mar sem sol correr.
E as milhas dez de fértil terra
Cingiam-se em fortins de guerra:
E nos jardins corriam os canais
Por incenseiros sempre a florescer;
E bosques como os montes, ancestrais,
Que o verde ensolarado ia envolver.

         E, ah! a fraga romântica inclinada
         Outeiro abaixo, de um cedral frondoso!
         Visão selvagem! Sacra e encantada,
         Como a minguante, de uivos assombrada,
         Da jovem por seu infernal esposo!
         E um caos da fraga irrompe, fervilhando,
         Como se fosse a própria terra arfando,
         Estouram fortes fontes, que, em momentos,
         Num jato atiram colossais fragmentos:
         Em arco qual granizo ao chão caído,
         Ou grão com joio no mangual moído:
         E em meio às rochas nessa grande dança
         Perene, logo o sacro rio se lança.
         Por cinco milhas na dedálea ida,
         Por bosque e vale, o rio, em seu afã,
         Cruzando grutas amplas e anciãs,
         Afunda em ruído na maré sem vida.
         E nesse ruído Kubla veio ouvir
         A guerra, em voz profética, por vir!

         A sombra do domo de prazer
         Vai pairando sobre as vagas;
         Onde ouvia-se o som crescer
         Pelas fontes, pelas fragas.
Era um milagre do mais raro zelo,
Um domo ao sol com grutilhões de gelo!
         E o que em visão foi-me mostrado:
         Saltério à mão, com voz sonora,
         Era abissínia a donzela
         E, com seu saltério, ela
         Cantava sobre o Monte Abora.
         Se o seu canto e sinfonia
         Pudesse em mim eu reavivar,
         Tal júbilo me venceria
Que co’a canção iria, no ar,
Erguer o domo ensolarado,
O domo! O grutilhão glacial!
E a todos seria mostrado:
Diriam, Cuidado! Cuidado!
O olho em luz, cabelo alado!
O olhar cerre em temor freiral,
E três voltas teça ao redor,
Pois que ele sabe o sabor
Do mel, do leite Celestial.

(tradução de Adriano Scandolara)

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Ferreira Gullar

Não há Vagas

 

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

 

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

 

— porque o poema, senhores,

está fechado:

“não há vagas”

 

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

 

O poema, senhores,

não fede

nem cheira.