Poesia

Comentários desativados em Poesia
Compartilhar

O Corvo

 

Certa vez, quando, à meia- noite eu lia, débil, extenuado,

um livro antigo e singular, sobre doutrinas do passado,

meio dormindo – cabeceando – ouvi uns sons trêmulos, tais

como se leve, bem de leve, alguém batesse à minha porta.

É um visitante”, murmurei, “que bate leve à minha porta.

Apenas isso, e nada mais.”

 

Bem me recordo! Era em dezembro. Um frio atroz, ventos cortantes…

Morria a chama no fogão, pondo no chão sombras errantes.

Eu nos meus livros procurava – ansiando as horas matinais –

um meio (em vão) de amortecer fundas saudades de Lenora,

– bela adorada, a quem, no céu, os querubins chamam Lenora,

e aqui, ninguém chamará mais.

 

E das cortinas cor de sangue, um arfar soturno, e brando, e vago

causou-me horror nunca sentido, – horror fantástico e pressago.

Então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)

a repetir: “É alguém que bate, alguém que bate à minha porta;

Algum noturno visitante, aqui batendo à minha porta;

é isso! é isso e nada mais!”

 

Fortalecido já por fim, brado, já perdendo a hesitação:

“Senhor! Senhora! quem sejais! Se demorei peço perdão!

Eu dormitava, fatigado, e tão baixinho me chamais,

bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha porta;

que não é fácil escutar. Porém só vejo, abrindo a porta,

a escuridão, e nada mais.

 

Perquiro a treva longamente, estarrecido, amedrontado,

sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonhado.

Silêncio fúnebre! Ninguém. De visitante nem sinais.

Uma palavra apenas corta a noite plácida: – “Lenora!”.

Digo-a em segredo, e num murmúrio, o eco repete-me – “Lenora!”

Isto, somente – e nada mais.

 

Para o meu quarto eu volto enfim, sentindo n’alma estranho ardor,

e novamente ouço bater, bater com mais vigor.

“Vem da janela”, presumi, “estes rumores anormais.

Mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.

Fica tranqüilo, coração! Perscruta, calmo, este mistério.

É o vento, o vento e nada mais!”

 

Eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de fora,

um Corvo grande, ave ancestral, dos tempos bíblicos, – d’outrora!

Sem cortesias, sem parar, batendo as asas noturnais,

ele, com ar de grão-senhor, foi, sobre a porta do meu quarto,

pousar num busto de Minerva, – e sobre a porta do meu quarto

quedou, sombrio, e nada mais.

 

Eu estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno

tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno.

“Sem crista, embora” – ponderei -, “embora ancião dos teus iguais,

não és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho errante de Plutão!

Que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de Plutão?”

E o Corvo disse: “Nunca mais!”

 

Fiquei surpreso – pois que nunca imaginei fosse possível

ouvir de um Corvo tal resposta, embora incerta, incompreensível,

e creio bem, em tempo algum, em noite alguma, entes mortais

viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta,

e declarar (do alto de um busto, erguido acima de uma porta)

que se chamava “Nunca mais”.

 

Porém o Corvo, solitário, essas palavras só murmura,

como que nelas refletindo uma alma cheia de amargura.

Depois concentra-se e nem move – inerte sobre os meus umbrais –

uma só pena. Exclamo então: “Muitos amigos me fugiram…

Tu fugiras pela manhã, como os meus sonhos me fugiram…”

Responde o Corvo: “Oh! Nunca mais!”

 

Pasmo, ao varar o atroz silêncio uma resposta assim tão justa,

e digo: “Certo, ele só sabe essa expressão com que me assusta.

Ouviu-a, acaso, de algum dono, a quem desgraças infernais

hajam seguido, e perseguido, até cair nesse estribilho,

até chorar as ilusões com esse lúgubre estribilho

de – “nunca mais! oh! nunca mais!”.

 

De novo, foram-se mudando as minhas mágoas num sorriso…

Então, rodei uma poltrona, olhei o Corvo, de improviso,

e nos estofos mergulhei, formando hipóteses mentais

sobre as secretas intenções que essa medonha ave agoureira

– rude, sinistra, repulsiva e macilenta ave agoureira, –

tinha, grasnando “Nunca mais”.

 

Mil coisas vagas pressupus… Não lhe falava, mas sentia

que me abrasava o coração o duro olhar da ave sombria.

… E assim fiquei, num devaneio, em deduções conjeturais,

minha cabeça reclinando – à luz da lâmpada fulgente

nessa almofada de veludo, em que ela, agora, – à luz fulgente -,

não mais descansa – ah! nunca mais.

 

Subitamente o ar se adensou, qual se em meu quarto solitário,

anjos pousassem, balançando um invisível incensário.

“Ente infeliz” – eu exclamei. – “Deus apiedou-se dos teus ais!

Calma-te! calma-te e domina essas saudades de Lenora!

Bebe o nepente benfazejo! Olvida a imagem de Lenora!

E o Corvo disse: “Nunca mais.”

 

“Profeta!” – brado. “Anjo do mal, Ave ou demônio mais irreverente

que a tempestade, ou Satanás, aqui lançou tragicamente,

e que te vês, soberbo, nestes desertos areais,

nesta mansão de eterno horror! Fala! responde ao certo! Fala!

Existe bálsamo em Galaad? Existe? Fala, ó Corvo! Fala!”

E o Corvo disse: “Nunca mais.”

 

“Profeta!” – brado. “Anjo do mal, Ave ou demônio irreverente,

dize, por Deus, que está nos céus, dize! eu to peço humildemente,

dize a esta pobre alma sem luz, se lá nos páramos astrais,

poderá ver, um dia, ainda, a bela e cândida Lenora,

amada minha, a quem, no céu, os querubins chamam Lenora!”

E o Corvo disse: “Nunca mais.”

 

“Seja essa frase o nosso adeus” – grito, de pé, com aflição.

“Vai-te! Regressa à tempestade, à noite escura de Plutão!

Não deixes pluma que recorde essas palavras funerais!

Mentiste! Sai! Deixa-me só! Sai desse busto junto à porta!

Não rasgues mais meu coração! Piedade! Sai de sobre a porta!”

E o Corvo disse: “Nunca mais.”

 

E não saiu! e não saiu! ainda agora se conserva

pousado, trágico e fatal, no busto branco de Minerva.

Negro demônio sonhador, seus olhos são como punhais!

Por cima, a luz, jorrando, espalha a sombra dele, que flutua…

E a alma infeliz, que me tombou dentro da sombra que flutua,

não há de erguer-se, “Nunca mais”.

 

 

Edgard Allan Poe

 

(Trad. Gondin da Fonseca – 1928)

 

O Poeta

 

Edgard Allan Poe (1809-1849), grande contista, grande poeta e talentoso crítico literário, o primeiro a se destacar nos EUA. Sua poesia era romântica e semeada de imagens originais.

 

 “O Corvo” (“The Raven”) figura entre os mais famosos e mais traduzidos poemas da literatura de todos os povos. Poe conhecia como ninguém os meandros, desejos e temores, da alma humana. Talvez por este motivo sua influência tenha alcançado uma gama tão variada de escritores e poetas.

 

The Raven é provavelmente “o poema” singular, entre todos poemas já escritos em língua inglesa, desde Beowulf, passando por Shakespeare, até hoje, que mais respostas poéticas tem provocado nos últimos dois séculos, entre as quais se encontram as traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Em relação a muitos especialistas é de Gondin da Fonseca a melhor tradução desse poema.

 

Aceita-se majoritariamente que Poe seja o criador das histórias de suspense e policiais. Alguns mais fervorosos argumentam que seja também o pai da ficção científica, da nova crítica literária norte-americana, e da poesia simbolista. Inegável é sua posição como um dos maiores poetas, escritores e críticos que os EUA já tiveram.

Os comentários estão fechados.