Fuga inútil
São Paulo ficou chateada outro dia porque a chuva barbarizou a cidade. Mas o Rio de Janeiro está aí mesmo para consolá-la. Pior que ser barbarizada pela natureza com a ajuda dos homens, é ser barbarizada pelos homens com ajuda da sua natureza vil.
Oito e meia da noite de quarta-feira, horário normal de rush da Lagoa Rodrigo de Freitas para a Barra da Tijuca. De repente, a cena de cinema catástrofe: da entrada do Túnel Zuzu Angel, ao lado da PUC, desce uma multidão de motoristas e passageiros a pé, desesperados, deixando seus veículos abandonados.
Não sabiam bem de que fugiam. Tudo indicava um arrastão de bandidos. Mais um. Alguém ouvira os tiros e iniciara a debandada. Numa cidade como o Rio de Janeiro de hoje, quando se vê alguém fugindo, foge-se também.
Algumas horas depois, com um pouco de apuração, descobria-se que tinha havido um arrastão imaginário. Os tiros eram estampidos de um cano de descarga furado.
Seria um alívio, se fizesse alguma diferença. Aquele bando de inocentes correndo na contramão não fugia de um alarme falso. Fugia de seu lugar na fila do massacre urbano. Inconscientemente, estão todos esperando a sua hora.
Duas semanas antes, o mesmo túnel fora bloqueado por bandidos. Um arrastão de verdade, com tiros para o alto de verdade. Uma trovoada em São Paulo é uma trovoada. Pode atrasar muito a sua chegada em casa. Uma trovoada no Rio de Janeiro pode ser uma granada. Você pode não chegar em casa nunca mais.
Um médico que chegava em casa em Ipanema levou dois tiros de assaltantes. Está em coma, e os bandidos estão com a sua moto. Sucederam-se protestos, bastas etc. Agora, duas semanas depois, no quarteirão vizinho da mesma área nobre de Ipanema, outro motociclista inocente leva dois tiros de assaltantes. Está morto.
Como não há com quem contar, talvez o truque seja driblar o tal intervalo de duas semanas. Volte tranqüilo ao local do crime na semana seguinte. Depois suma dali. A não ser que os bandidos alterem a escala sem avisar. Mas isso não se faz.
Autoridades e especialistas em segurança pública falam da necessidade de se reduzir a “sensação de insegurança”. Estamos no caminho certo. Quando a população inteira estiver em estado de coma, a sensação de insegurança será zero.
Inundação e fuzilamento acontecem toda hora na periferia! — gritarão as vozes progressistas. A hipocrisia está sempre aí para nos consolar com os padrões do inferno.
Pelas forças da natureza ou da estupidez, a dignidade nas metrópoles brasileiras está indo pelo ralo. Tudo muito normal. A culpa é do ralo, que retém a chuva, e deixa passar a vergonha das pessoas de viver desse jeito.
Guilherme Fiúza, jornalista e cineasta
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