Poesia

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Distante melodia

 

Num sonho d´Íris morto a oiro e brasa,

Vêm-me lembranças doutro Tempo azul

Que me oscilava entre véus de tule –

Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.

 

Então os meus sentidos eram cores,

Nasciam num jardim as minhas Ânsias,

Havia na minha alma Outras Distâncias –

Distâncias que o segui-las era flores…

 

Caía Oiro se pensava Estrelas,

O luar batia sobre o meu alhear-me…

– Noites-lagoas, como éreis belas

Sob terraços-lis de recordar-Me…

 

Idade acorde d´Inter-sonho e Lua,

Onde as horas corriam sempre jade,

Onde a neblina era uma saudade,

E a luz – anseios de Princesa nua…

 

Balaústres de som, arcos de Amar,

Pontes de brilho, ogivas de perfume…

Domínio inexprimível d´Ópio e lume

Que nunca mais, em cor, hei-de habitar…

 

Tapetes de outras Pérsias mais Oriente…

Cortinados de Chinas mais marfim…

Áureos Templos de ritos de cetim…

Fontes correndo sombra, mansamente…

 

Zimbórios-panteões de nostalgias,

Catedrais de ser-Eu por sobre o mar…

Escadas de honra, escadas só, ao ar…

Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias…

 

Lembranças fluidas… cinza de brocado…

Irrealidade anil que em mim ondeia…

– Ao meu redor eu sou Rei exilado,

Vagabundo dum sonho de sereia…

 

Mário de Sá-Carneiro

 

O Poeta

 

Escritor português, natural de Lisboa. A mãe morreu quando Sá-Carneiro tinha apenas dois anos e, em 1894, o pai iniciou uma vida de viagens, deixando o filho com os avós e uma ama na Quinta da Victória, em Camarate. Em 1900, entrou no liceu do Carmo, começando, então, a escrever poesia. Entretanto, o pai, de regresso dos Estados Unidos, levou-o a visitar Paris, a Suíça e a Itália. Em 1905 redigiu e imprimiu O Chinó, jornal satírico da vida escolar, que o pai o impediu de continuar, por considerar a publicação demasiado satírica. Em 1907 participou, como actor, numa récita a favor das vítimas do incêndio da Madalena, e no ano seguinte colaborou, com pequenos contos, na revista Azulejos.

Transferido, em 1909, para o Liceu Camões, escreveu, em colaboração com Thomaz Cabreira Júnior (que viria a suicidar-se no ano seguinte), a peça Amizade. Impressionado com a morte do amigo, dedicou-lhe o poema A Um Suicida, 1911.

Matriculou-se na Faculdade de Direito de Coimbra em 1911, mas não chegou sequer a concluir o ano. Iniciou, entretanto, a sua amizade com Fernando Pessoa e seguiu para Paris, com o objectivo de estudar Direito na Sorbonne. Na capital francesa dedicou-se sobretudo à vida de boémia dos cafés e salas de espectáculo, onde conviveu com Santa-Rita Pintor e escreveu, de parceria com António Ponce de Leão, em 1913, a peça Alma. Em 1914, publicou A Confissão de Lúcio (novela) e Dispersão (poesia). No ano seguinte, durante uma passagem por Lisboa, começou, conjuntamente com os seus amigos, em especial Fernando Pessoa, a projectar a revista literária que se viria a publicar com o nome de Orpheu.

Como escritor, Mário de Sá-Carneiro demonstra, na fase inicial da sua obra, influências do decadentismo e até do saudosismo, numa estética do vago, do complexo e do metafísico. Aderiu posteriormente às correntes de vanguarda do paúlismo, do sensacionismo e do interseccionismo, apresentadas por Fernando Pessoa. O delírio e a confusão dos sentidos, marcas da sua personalidade, sensível ao ponto da alucinação, com reflexos numa imagística exuberante, definem a sua egolatria, uma procura de exprimir o inconsciente e a dispersão do eu no mundo.

Este narcisismo, frustrada a satisfação das suas carências, levou-o a um sentimento de abandono e a uma poesia auto-sarcástica, expressa em poemas como Serradura, Aqueloutro ou Fim, revendo-se o poeta na imagem de um menino inútil e desajeitado, como em Caranguejola. A sua crise de personalidade, que se traduziu no frenesim da experiência sensorial e no desejo do extravagante, foi a da inadequação e da solidão, da incapacidade de viver e de sentir o que desejava (veja-se o poema Quase), que o levou a uma tentativa de dissolução do ser, consumada na morte.

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