Arquivo do mês: maio 2021

Álvaro de Campos

Aniversário

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

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MEDIDA

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“Eu sou do tamanho daquilo que sinto, que vejo e que faço, não do tamanho que os outros me enxergam” (Bob Marley)

“O homem é a medida de todas as coisas”, ensinou Protágoras, o célebre sofista da Grécia Antiga, obrigando-me a invocar a regra que diz que “toda regra tem exceção” para deixar os tolos fanatizados por políticos de fora da medida “das coisas que são, enquanto são e das coisas que não são, enquanto não são”….

Sem ligar para que os tolos pensam e dizem, foi sofrendo a interferência da memória dos meus pais, da minha mãe espírita kardecista (militante, participando de federações na Paraíba e no Rio de Janeiro) e do meu pai, de formação positivista que se assumia como agnóstico, que escrevi o artigo “Ressureição”.

No texto, abordei pela segunda vez os casos de Bolsonaro a Dilma, ele querendo blindar o general Pazuello e ela querendo salvar Lula, com cargos ministeriais. Estes fatos lembraram-me o episódio em de Dilma pediu que chamassem o Messias e por ela estar gripada, fanha, o pessoal ouviu “Bessias”.

Por ter falecido este personagem que foi badaladíssimo na época do episódio, a citação que fiz dele provocou críticas de uns idiotas que falam em nome da “religião”. Então, para me defender, invoco o pastor Martin Luther King, com a frase: “a religião mal-entendida é uma febre que pode terminar em delírio”.

Então rebato os delirantes afirmando que não invoquei o espírito do Messias, não porque dê importância à Congregação do Santo Ofício que proibiu que se interroguem espíritos e ouçam as suas respostas; nem porque tenho dúvidas sobre a crença espírita de que as almas vagam pelo mundo.

Sei, porém, que isto suscita discussões. É por demais conhecida a obstinação de Lombroso buscando provas sobre a comunicação dos mortos, e foi confrontado pelo incrédulo Gustave Le Bom que escreveu: – “sob o domínio da crença no além vida, até um cientista fica inseguro sobre os métodos científicos de análise”.

Tais posições destes importantes personagens, pensamos no que se diz sobre os chamados médiuns, aqueles que possuem o dom de se comunicar com os espíritos. Argumenta-se que se trata de possuidores de um sentido, entre os 21 inexplorados além dos cinco usados normalmente, audição, olfato, paladar, tato e visão.

Conforme os kardecistas, existem poucos médiuns autênticos no mundo, porque a mediunidade é um fenômeno raríssimo. Citam alguns nomes que foram capazes de exercer esta prática, como as santas Joana D’Arc e Tereza D’Ávila e no Brasil, Chico Xavier; os Evangelhos contam que na cruz Jesus comunicou-se com Deus, murmurando “Eloi, Eloi, lamá sabactani? ” – “Deus, ó Deus, porque me abandonastes? ”.

Em verdade, as medidas sobrenaturais não são traçadas com régua e compasso, e muito menos por pessoas que se investem de intermediários da divindade, cobrando módicas quantias para isto num determinado endereço, e até patenteando a “marca” Jesus Cristo….

Quanto à vida real, com ou sem religião, “se você quiser ver a verdadeira medida de um homem, preste atenção em como ele trata seus inferiores, não seus iguais”, aconselha a escritora britânica J. K. Rowling. Lição que deveria chegar a Paulo Guedes para ele não desdenhar filhos e filhas de porteiros…, é uma silhueta recortada do elitismo bolsonarista assumido fraudulentamente como “de direita” e “conservador”.

Vimos também este tratamento com outrem feito por Bolsonaro atacando o principal parceiro comercial do Brasil, a China. Tal cretinice não se trata de Teoria da Conspiração, mas talvez uma manifestação mediúnica do diabinho que incentiva o Presidente na política macabra do negativismo, querendo a suspenção do envio de insumos de vacinas para matar mais brasileiros.

O comportamento psicopático do Presidente, não é “invenção da mídia”, nem ataques comuno-globalistas; está nas declarações dele gravadas em vídeo, com as quais se pode ver que a sua posição negativista causa mais mal ao País do que todos os acusados de infringir a Lei de Segurança Nacional por criticá-lo….

Cesário Verde

EU QUE SOU FEIO, SÓLIDO, LEAL

 

Eu que sou feio, sólido, leal,

A ti, que és bela, frágil, assustada,

Quero estimar-te, sempre, recatada

Numa existência honesta, de cristal.

 

Sentado à mesa de um café devasso,

Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,

Nesta babel tão velha e corruptora,

Tive tenções de oferecer-te o braço.

 

E, quando socorrestes um miserável,

Eu, que bebia cálices de absinto,

Mandei ir a garrafa, porque sinto

Que me tornas prestante, bom, sudável.

 

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;

E pus me a olhar, vexado e suspirando,

O teu corpo que pulsa, alegre e brando,

Na frescura dos linhos matinais.

 

Via-te pela porta envidraçada;

E invejava, – talvez que não o suspeites! –

Esse vestido simples, sem enfeites,

Nessa cintura tenra, imaculada.

Soberbo dia! Impunha-me respeito

A limpidez do teu semblante grego;

E uma família, um ninho de sossego,

Desejava beijar o teu peito.

 

Com elegância e sem ostentação,

Atravessavas branca, esbelta e fina,

Uma chusma de padres de batina,

E de altos funcionários da nação.

 

«Mas se a atropela o povo turbulento!

Se fosse, por acaso, ali pisada!»

De repente, parastes embaraçada

Ao pé de um numeroso ajuntamento,

 

E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,

Julguei ver, com a vista de poeta,

Um pombinha tímida e quieta

Num bando ameaçador de corvos pretos.

 

E foi, então que eu, homem varonil,

Quis dedicar-te a minha pobre vida,

A ti, que és ténue, dócil, recolhida,

Eu, que sou hábil, prático, viril.

Mário de Sá Carneiro

QUASE

 

Um pouco mais de sol – eu era brasa,

Um pouco mais de azul – eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído

Num grande mar enganador de espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

 

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim – quase a expansão…

Mas na minh’alma tudo se derrama…

Entanto nada foi só ilusão!

 

De tudo houve um começo … e tudo errou…

– Ai a dor de ser – quase, dor sem fim…

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou…

 

Momentos de alma que desbaratei…

Templos aonde nunca pus um altar…

Rios que perdi sem os levar ao mar…

Ânsias que foram mas que não fixei…

 

Se me vagueio, encontro só indícios…

Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios…

 

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí…

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi…

 

Um pouco mais de sol – e fora brasa,

Um pouco mais de azul – e fora além.

Para atingir faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

 

Listas de som avançam para mim a fustigar-me

Em luz.

Todo a vibrar, quero fugir… Onde acoitar-me?…

Os braços duma cruz

Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar…

 

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Florbela Espanca

A MULHER

Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!

Como sabes ser doce e desgraçada!

Como sabes fingir quando em teu peito

A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosa duma imagem.

Adorada que amaram doidamente!

Quantas e quantas almas endoidecem

Enquanto a boca rir alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm

Sem nunca o confessarem a ninguém

Doce alma de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade.

Dum rei; amor de sonho e de saudade,

Que se esvai e que foge num lamento!

FASCISMO

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)

“Não seria demasia lembrar que os arautos das devassas ilegais odiosas e fascistas, acabam por ter que quebrar os seus próprios espelhos. ” (Frase de autor desconhecido citada por Carl Sagan)

Chamar Bolsonaro de fascista não dá. Ele pode até pensar no fim da democracia pensando receber apoio das FFAA; mas pela sua formação, egresso da caserna por contumaz indisciplina, julga identificar-se,  como “capitão contestador”, como foram os “revolucionários” da mesma patente Luiz Carlos Prestes e Carlos Lamarca….

Diferente dos dois, porém, a sua formação política nasceu na Câmara dos Deputados sentado entre os picaretas do baixo clero. É uma salada mista ideológica; como deputado oportunista, votava com o PT-governo e dava entrevistas elogiando o ditador venezuelano Hugo Chávez…. Depois voltou-se para a “direita”.

Pela notória obtusidade, é incapaz de tornar-se um estadista, nem ao menos aparentar conhecimento da conjuntura socioeconômica nacional; e sequer possui eloquência oratória para cativar as massas.

É difícil para ele conviver com militares de alta patente da ativa, com curso de Estado Maior obedientes à Constituição; e muito menos com os políticos cultos de formação acadêmica; acomoda-se bem cercado da turma do Centrão, de advogados de porta de xadrez e de policiais que abandonaram a farda tornando-se seguranças.

Foi elevado ao poder federal por causa da roubalheira lulopetista, condenada e desmoralizada por patriotas brasileiros, que foram para as ruas espontaneamente aos milhões. E naquela conjuntura, a radicalização política foi rápida; e não demorou que fosse aproveitada por extremistas de direita e revanchistas do regime militar, orientados pelos piores anticomunistas, aqueles que não conseguiram se encarreirar no partido, se melindraram, e viraram gurus de ignorantes deslumbrados.

Ganha as eleições, as bandeiras da campanha contra a corrupção foram abandonadas pela pressão interna da criminalidade na mesquinharia das “rachadinhas”; como foram traídas outras promessas, como o liberalismo econômico e uma administração livre da picaretagem parlamentar.

Caminhou-se então o Governo Bolsonaro para a mitologia agressiva e a irracionalidade ideológica, promovendo o culto da personalidade e, com a pandemia do novo coronavírus, enaltecendo o negacionismo da Ciência inspirado na subalternidade ao boçal Donald Trump.

A cultura dominante e continuada do negacionismo promovido pela Familiocracia instalada no Planalto, nos leva à canção dos Engenheiros do Hawaii, “…o fascismo é fascinante/ deixa a gente ignorante e fascinada”. Este aludido fascínio atrai aqueles que são inclinados a “ouvir e obedecer”, e é repudiado pelos amantes da Democracia e da Liberdade.

O fascínio fascistizante produz decepções entre os que respeitam o Exército Brasileiro, ao saber que três militares-ministros, da Casa Civil, da Defesa e da Energia, tomaram vacina escondidos do Chefe. Um deles, Luiz Eduardo Ramos, da Casa Civil, contou que tomou “escondido” a vacina contra a Covid-19 e que tenta convencer o presidente Jair Bolsonaro a se imunizar também. Parece que esqueceram que “A verdade é um símbolo da honra militar”.

Lá em baixo, nas valas lamacentas do fanatismo e do mercenarismo, a sedução fascista chega nas redes sociais com ataques à Maçonaria e pior, com o revoltante racismo de uma “Petição ao Congresso” contra o casamento inter-racial para “garantir” a “raça pura”. Sobre esta loucura, a internauta Maria Feistauer falou por nós declarando: -“Os nazistas estão saindo das sombras sem qualquer pudor”.

Estas figurinhas fáceis que atuam nas redes sociais por controle remoto do Palácio do Planalto, exibem agora uma  ação fascista de atacar o médico Luiz Henrique Mandetta, que na CPI da Covid revelou que o País vive sob o poder de uma família tresloucada, capaz de fraudar bula de remédio e mentir sobre os números da pandemia.

Mentindo, esse bando atua como cópia xerocada do governo necrófilo, e embora muitos neguem serem fascistas, o são até sem o saber quando assumem a organização e a disciplina fascista para defender o Capitão Minto.

Para os servis lambe-botas não gasto mais de três linhas; uma delas é para lembrar-lhes que “a cadela do fascismo está sempre no cio”, como escreveu Brecht; e também com Mussolini ao assumir o poder, encerrando o discurso de posse com a frase:  “Enterramos o cadáver pútrido da liberdade. ”

 

 

Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

O TEMPO (2)

MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol,com.br)

“O tempo é o teu capital; tens de o saber utilizar. Perder tempo é estragar a vida” (Kafka)

Einstein, o genial criador da Teoria da Relatividade, observou que “o tempo é apenas uma persistente ilusão”, pela sua passagem relativa e ligada à velocidade. Será que um dia poderemos retroceder ao passado e avançar no futuro?

Leva-nos ao genial filme hollywoodiano, dirigido por Robert Zemeckis, com script dele próprio e Bob Gale, “Back to the Future” – De Volta ao Futuro -, que de tão relevante e incrivelmente extemporâneo, já deu três versões em série.

Produzido em 1985 com um excelente elenco que conta com Michael J. Fox, Christopher Lloyd, Lea Thompson, Crispin Glover e Thomas F. Wilson, se mantém atual por trazer a visão de que as coisas se interpõem o passado e o tempo….

Da ficção para a realidade, chama a atenção o fato de não ser possível esconder para nós, a medida do tempo, escalonado na sua duração por segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, séculos…

Do cinema nos vem, também, uma curiosa situação de ficar preso ao tempo, com o filme “Feitiço do Tempo”, que tem como enredo a cobertura do Dia da Marmota, que a cada dia 2 de fevereiro, se define, pelo bichinho, se o inverno continua pelo mês. O repórter-do-tempo de uma TV vai à cidadezinha onde ocorre o evento e por não poder retornar à origem por uma nevasca, dorme no local e acorda sempre no mesmo dia…. Vale a pena assistir….

É interessante, porque contamos na vida com épocas, comemorações, ocasiões, períodos e prazos; e na medida em que envelhecemos, alegra-nos ou entristecem-nos os acontecimentos de ocasião.

Então observamos coisas que se passam diante de nós, na Ciência, na Economia e na Política. Que peso no tempo nos trouxe a pandemia do novo coronavírus! Como nos contraria ver no que produziu a estúpida dupla negacionista Trump e Bolsonaro… que entre seus malefícios ocasionaram milhares de mortes.

E uma das piores coisas que fizeram atingiu as populações miseráveis dos países pobres, negando a quebra da patente das vacinas. Eles favoreceram necrofilamente a indústria farmacêutica, sedenta de lucro sem se preocupar em curar alguém….

É inesquecível a colocação do bioquímico e biólogo molecular inglês Sir Richard J. Roberts, prêmio Nobel de Medicina, que disse “para a indústria farmacêutica, a cura é menos rentável que a doença”.

Os doidinhos fanáticos do bolsonarismo (teve um, nas manifestações de 1º de maio que exibiu uma placa “Autorizo o Presidente a me matar! ”) vão dizer que é opinião esquerdista, ou pior, uma “conspiração chinesa”…

Que pensem assim, ou reproduzam o que lhes mandam dizer. Esses chatos auto-assumidos “de direita”, renascidos do passado obscurantista das ditaduras e suas consequentes repressões à liberdade de expressão, leis de “segurança nacional”, prisões e torturas, são poucos e voltarão ao esquecimento, de onde não deveriam ter saído.

Eleitoralistas, querem um retorno à falsa polarização eleitoral, a fraudulenta e insultuosa alternativa entre Bolsonaro e Lula, iguais em quase tudo, incluindo a corrupção, de um, a grosso, vendendo medidas provisórias e do outro, no varejo com as “rachadinhas”….

Se os chatos “de direita” estão se amostrando e revoltando quem assiste a sua estupidez, enquanto os chatos de esquerda, por sua vez, continuam os mesmos, pensando e agindo como os communards ou os bolcheviques de 1917.

Então lembro a história de um esquerdista chato que numa conferência em Frankfurt abordou o patriarca dos Rothschild, fundador da maior oligarquia financeira do mundo no século 19.

O Banqueiro defendia o humanismo; então, o Agitador lhe interrompeu em voz alta: –  “O senhor possui 200 milhões de florins e se assume como humanista, porque não divide a sua fortuna com os deserdados? ”

Rothschild alisou a barba e respondeu:  – “Você tem razão; se devo partilhar o meu dinheiro, raciocinemos: a Europa tem 200 milhões de habitantes, então cabe um florim para cada um”. Meteu a mão no bolso, tirou uma moeda, e arrematou: – “Eis aqui o seu, venha busca-lo”.

… E assim, o tempo se fecha….

Fernando Pessoa

Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

Fernando Pessoa

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.