Arquivo do mês: julho 2020
CRIAÇÃO
MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)
Imaginar é o princípio da criação. Nós imaginamos o que desejamos, queremos o que imaginamos e, finalmente, criamos aquilo que queremos” (Bernard Shaw)
Não, não estou a fim de falar sobre os textos bíblicos Gênesis 1:27 e Gênesis 1:28, descrevendo como Deus criou os seres humanos, homem e mulher, parecidos com Ele próprio. Nem lembrar que o Criador lhes disse: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”.
Se entendesse da arte pictórica, preferiria escrever sobre o comentadíssimo afresco “A Criação de Adão” que Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina no século 16 a pedido do papa Júlio II. Sei apenas que a presença de Lilith, esposa mística de Adão, na pintura, cria polêmica até hoje…
O substantivo feminino “Criação” tem uma grande amplitude desde a origem linguística, do latim creatĭo,ōnis, significando conceber, desenvolver, elaborar, engendrar, procriar… E na linguagem coloquial da língua portuguesa, temos um vastíssimo sinonimato, como compor, educar, fabricar, fazer, formar, idealizar, iniciar, imaginar e até parir…
Com a palavra, temos o efeito de criar, de tirar do nada; encontramos nela a capacidade de inventar como se vê especialmente nas agências de publicidade, ou de simplesmente domesticar animais nos galinheiros e chiqueiros para consumo alimentar.
É interessante no estudo da linguagem o processo de criação de novas palavras, os chamados neologismos, expressões derivadas ou formadas de outras já existentes, na mesma língua ou importadas. Citei num dos últimos artigos, o “radar” nascido da rubrica inglesa formada pelo “RA”, rádio, “D”, detetection, e “A”, de and e “R” de ranging que muitos não sabiam…
Da Inglaterra veio também a expressão “perder o trem”, atribuída a Churchill; que se tornando popular, inspirou o sambista Adoniram Barbosa nos versos “… Se eu perder o trem /que sai agora, às onze horas/ Só amanhã, de manhã”…
Do pessoal estrangeiro recebemos também dos franceses uma interessante criatividade idiomática, vindas, por exemplo, de Marcel Prévost, “semi-virgem”, de Taine, “velho regime”, e de Napoleão “espoliador”…
O brasilês, como se refere o mestre gaúcho José Carlos Bortoloti, é rico em criadores de neologismos, entre os quais vale a pena citar Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Guimarães Rosa, José de Alencar, José Lins do Rego, Manoel Bandeira e Mário Quintana. Modéstia à parte, lá em cima escrevi “sinonimato” que não existe nos dicionários…
As expressões populares entre nós dão um colorido especial ao brasilês. Nossa gíria se expande como uma pandemia. Antigamente – por força dos programas radiofônicos e dos primórdios da televisão quase todas saíam do Rio de Janeiro.
Com o tempo, o intercâmbio e o estudo, descobriu-se o universo dos regionalismos, a bela diversidade das expressões populares cobrindo o território nacional do Oiapoque ao Chuí…
Das antiguidades francesas adaptadas e correntes no Nordeste, e do lusitano arcaico remanescente nas Minas Gerais ao galante castelhano dos gaúchos, formamos o nosso idioma, que no dizer de Noel Rosa, “…já passou do português! ”.
A criação chegou à pandemia do novo coronavírus, nos costumes, na linguagem, e até no anedotário. Levou-nos a aprender a ficar em casa e gerenciar o tempo; a popularizar o termo “negativismo” dantes usado somente pelos filósofos, para designar a política sinistra dos governantes aliados da peste…
No anedotário vale a pena lembrar o comentário do jornalista Mário Sabino sobre o “programinha em São Paulo pós-flexibilização: clube, shopping, restaurante, cineminha, vinhozinho — e fim de noite no hospital”.
… E vem da Alemanha tão sisuda, uma piada pronta: a BVG, empresa de transporte públicos, pede ao povo renúncia geral no uso de desodorante, em campanha para incentivar o uso de máscaras…
SONHOS
MIRANDA SÁ (Email: mirandasa@uol.com.br)
“É só um sonho que se sonha só, / Mas sonho que se sonha junto é realidade…” (Raul Seixas)
Com o avanço da ciência e da tecnologia, os seres humanos pensantes se convencem de que a nossa estrutura anatômica é uma sofisticada versão do computador, agindo com os impulsos elétricos nervosos através de condutores ligados ao sistema nervoso central.
Temos no cérebro o encéfalo, parte do Sistema Nervoso Central, que recebe, processa e gera respostas às mensagens que chegam até ele. Uma espécie de radar aperfeiçoado biologicamente para o nosso organismo.
Lembremos que o radar, de uso excessivo nas últimas guerras, é um aparelho que emite ondas eletrônicas detectando corpos sólidos à sua frente. Seu nome é um neologismo adotado em todos idiomas do mundo, vindo da rubrica inglesa formada pelo “RA”, rádio, “D”, detetection, e “A”, de and e “R” de ranging…
Após a Segunda Guerra Mundial, o poeta e dramaturgo Félix-Henri Bataille, maravilhado pelo radar, escreveu sobre as percepções sensoriais humanas, lamentando que nós usamos mal essas maravilhas, porque não sabemos como processá-las.
Realmente. Há estudos científicos que nos falam de vinte ou mais sentidos, além da audição, do olfato, do paladar, do tato e da visão; operando-os, eles nos permitiriam uma imensa e múltipla percepção de sensações externas.
Pesquisadores científicos dos sentidos dão exemplos de sensações que vão além dos cinco conhecidos, como intuição, premonição, pressentimento e transmissão do pensamento. Alguns vão mais além, falam dos sonhos que projetam invenções e/ou indicam saídas para situações difíceis.
Para Freud, no seu livro “Teoria dos Sonhos”, o sonho é um fenômeno psíquico onde realizamos desejos inconscientes; mais adiante, na sua “Interpretação dos Sonhos”, o Pai da Psicanálise afirma que quando o estado de sono reprime revelações anormais ou perversas, é o motivo gerador de traumas e mudanças de comportamento.
Falando por experiência própria, eu sempre me preocupei com o sonho, a sua forma de traduzir fatos do cotidiano, resposta às sensações fisiológicas e o que fica da sua lembrança ao acordar.
Esclareço que uso alguns métodos para exercitar o adormecer e para estimular o sono,e estimulando para os sonhos experiências pessoais. Aprendi muito no correr dos anos, mas tudo teve início na infância, graças à minha formação através das discussões domésticas sobre isto.
Com meu pai positivista e a minha mãe espírita kardecista, nós discutíamos muito a respeito das manifestações do sonho, o pai refletindo sobre vidas interplanetárias – hoje diríamos alienígenas –; e a mãe, sobrepesando e defendendo a imortalidade da alma – seja, a vida após a morte –.
Meus estudos esclareceram que foram os sonhos dos homens primitivos que os levaram à crença de uma outra vivência, paralela, precedendo milhares de anos as religiões orientais espiritualistas, o kardecismo, os cultos afro-ioruba e a sua descendência brasileira, a Umbanda.
O verbete Sonho, dicionarizado é um substantivo masculino, ato ou efeito de sonhar; e também a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo sonhar. A origem é latina, “somnium”, criação do sono.
A palavra deu um grandioso mergulho na política, graças ao discurso histórico de Martin Luther King, líder norte-americano do movimento pelos direitos civis, tornado antológico em todo mundo como “I have a dream” – “Eu tenho um sonho”.
A fala do grande líder norte-americano em Washington contra a segregação racial (que soube a pouco, contou com a presença de Frank Sinatra) teve um desfecho apoteótico, descrevendo o sonho como um sonho de liberdade, igualdade e respeito humano, um sonho para o futuro.
Vivendo o inferno astral trazido pelo novo coronavírus juntei o sonho de Martin Luther King ao sonho que Shakespeare pôs na boca de Hamlet: “Morrer — dormir; dormir, talvez sonhar — eis o problema. ”
Assim, fui levado a falar do meu sonho no isolamento social, por amor à vida, pelo civismo e em solidariedade ao próximo. Sonho com o fim da pandemia, e não quero sonhar só; vamos sonhar juntos para torna-lo realidade…
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