Arquivo do mês: julho 2016

Vladimir Maiakovski

Blusa Amarela

Do veludo de minha voz
Umas calças pretas mandarei fazer.
Farei uma blusa amarela
De três metros de entardecer.
E numa Nevsky(1) mundial com passo pachola(2)
Todo dia irei flanar(3) qual D. Juan frajola(4).

Deixai a Terra gritar amolengada de sono:
“Vais violar as primaveras verdejantes!”
Rio-me, petulante, e desafio o Sol!
“Gosto de me pavonear pelo asfalto brilhante!”

Talvez porque o céu está tão celestial
E a Terra engalanada(5) tornou-se minha amante
Que lhes ofereço versos alegres como um carnaval
Agudos e necessários como um estilete pros dentes.

Mulheres que amais minha carcaça gigante
E tu, que fraternalmente me olhas, donzela.
Atirai vossos sorrisos ao poeta
Que, como flores, eu os coserei
À minha blusa amarela.

(1913)

Tradução: Emílio Carreiro Guerra.

Florbela Espanca

Se Tu Viesses Ver-me…

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…

Florbela Espanca, in “Charneca em Flor”

Saiba mais sobre Florbela Espanca aqui

Erich Fried

O Amor

 

O que é

É absurdo
diz a Razão

É o que é
diz o Amor

É só desgraça

diz a Medida

É pura dor
diz o Medo

É sem esperança
diz o Juízo

É o que é
diz o Amor

É ridículo
diz o Orgulho

É imprudente

diz a Cautela
É impossível
diz a Experiência

É o que é
diz o Amor

Tradução: Flávio Aguiar
(Colaboração de Zinka Ziebell e Jorge de Almeida)

 

Georg Trakl

Aos Emudecidos

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.

Trad. Cláudia Cavalcante

Biografia de Georg Trakl aqui

Ferreira Gullar

João Boa Morte
Cabra Marcado para Morrer

Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.

Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.

João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
“Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro.”

Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
“Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço”.

Vasko Popa

MUSGO

 

Sonho amarelo da ausência

Do alto das telhas ingênuas

Aguarda

 

Aguarda para descer

Sobre as pálpebras fechadas da terra

Sobre as faces apagadas das casas

Sobre as mãos apaziguadas das árvores

 

Aguarda imperceptível

Para a mobília enviuvada

Abaixo no quarto

Revestir cuidadoso

De uma capa amarela

 

(tradução: Aleksandar Jovanovic)

Para saber mais sobre Vasko Popa clique aqui

 

Fernando Pessoa

Quero dos Deuses só que me não Lembrem

Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre — sem dita nem desdita,
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.
A quem deuses concedem
Nada, tem liberdade.

Ricardo Reis, in “Odes”
Heterónimo de Fernando Pessoa