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Poesia

A PULGA

Nota esta pulga, e nota, através dela,
Que o que me negas é uma bagatela;
Tendo sugado a mim, e a ti depois,
Nela se mescla o sangue de nós dois;
Sabes que isso não pode ser chamado
Defloração, vergonha, nem pecado;
Ela, no entanto, rude e ousada,
De sangue duplo se deforma empanturrada,
E, perto disso, o que desejo, ai! não é nada.

Pára! Três vidas poupa este momento,
Onde houve quase… oh, mais que um casamento.
Somos a pulga, e a nós ela é perfeito
Templo de núpcias e de núpcias leito;
Contra ti e teus pais, a união se deu
Nesse claustro murado em vivo breu.
Matando-me pela honradez,
Praticarás o suicídio a uma só vez,
E o sacrilégio,três pecados pelos três.

De púrpura manchaste, sem demência,
As unhas com o sangue da inocência?
Essa pulga seria tão daninha,
Só por te haver sugado uma gotinha?
Porém, exultas porque após tal morte
Nenhum de nós se mostra menos forte.
Bem, vê como o temor é ruim;
Perderás tanto de honra ao vires para mim.
Quanto de vida porque a pulga teve fim.

John Donne

Trad. de Jorge de Sena

O Poeta


Nascido em Londres numa rica família católica e depois convertido ao anglicanismo, John Donne (1572-1631) é um dos expoentes da chamada “poesia metafísica” inglesa. De início, vale observar com cuidado essa denominação. O termo metafísico, nesse caso, não corresponde ao seu significado atual. No início do século XVII, metafísica queria dizer, mais ou menos, “filosofia”. Portanto, eram poetas “pensadores”. Obviamente, não poderia ser metafísico, com o significado de hoje, um poema erótico como “Elegia: Indo Para o Leito”.

É verdade que esse erotismo situa-se mais no campo da imaginação que da experiência. Convertido ao anglicanismo, John Donne tornou-se também um clérigo da nova fé. Em 1624, foi nomeado deão da catedral de São Paulo, título que manteve até a morte. São famosos, mais que sua poesia, os sermões e outros textos de inspiração religiosa que ele escreveu. Um deles é amplamente conhecido e citado, embora nem sempre quem o cita saiba associar o texto ao autor.

É o texto que contém a célebre frase: “nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”Trata-se da “Meditação 17”, escrita por Donne em 1624. Nessa página, assim como em outras 22 meditações, ele reflete profundamente sobre a morte, motivado por uma severa enfermidade, da qual se recuperou. Sair dessa doença, escreveu Donne, foi, como nascer de novo. Transcrevo aqui o trecho mais conhecido dessa meditação. A “Meditação 17”, de Donne, inspirou o título do romance Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway, publicado em 1940.

Outra curiosidade: parte da tradução de “Elegia: Indo para o Leito”, de Augusto de Campos, foi musicada por Péricles Cavalcanti e gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental (Polygram, 1979). Mais uma dica: todo o conjunto das Meditações de Donne foi reunido agora numa edição bilíngüe, lançada no Brasil pela Editora Landmark. A tradução é de Fabio Cyrino.

Marjorie Salu

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Marjorie Salu
Temas: Notícias

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