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Artigo publicado n’ O Jornal de Hoje (Natal-RN)

As três caravelas de Cabral e o Brasil

MIRANDA SÁ, jornalista

Reclamava eu da extrema passividade dos brasileiros, do servilismo e bajulação da maioria diante do poder constituído, quando meu oftalmologista deu-me uma lição definitiva sobre esta vergonha nacional.

Foi uma intervenção simples e direta, através da pergunta: Você se lembra que o almirante Pedro Álvares Cabral, com apenas três caravelas – comandando menos de mil homens – dominou um território ocupado por 13 milhões de indígenas?

Foi uma paulada na moleira. Coisa de pensar, e muito. E ver que através dos poucos séculos de existência do Brasil como Nação, nosso povo traz o estigma da servidão do índio, dos negros imigrados à força por outros negros despóticos, e dos degredados portugueses.

A tatuagem servil incorporou-se à cultura popular como os totens e os tabus das sociedades primitivas; foi desenhada lenta e gradualmente neste vasto território, quase continental.

Tivemos a ocupação de largos trechos do litoral por aventureiros, náufragos e desertores, que assumiram a direção de grandes tribos, graças a um simples mosquetão ou de um relacionamento sexual com personalidades tribais.

São passados 400 anos e ainda persiste em Natal, o nome de Jean Jacques Riffaut no promontório que sedia a Base Naval, o “Rifoles”. Como sabemos, Riffaut foi o rei dos potiguares, dominando o Rio Grande do Norte por quase 20 anos.

A distribuição das capitanias hereditárias mostrou também a coroa portuguesa impondo aos habitantes coloniais a distribuição de vastas áreas e poder político. Uma medida feita arrogante e autoritariamente, desprezando opiniões dos primitivos moradores.

As duas capitanias que vingaram e prosperaram – São Vicente e Pernambuco – transformaram-se em verdadeiros feudos, ainda hoje com herdeiros remanescentes do antigo poder.

A historiografia vigente, às vezes oficial, às vezes não, mostra o domínio político dos barões no Império e dos coronéis na República Velha. O Império manteve-se por transmissão hereditária com apoio dos barões; e a Primeira República sustentada pelos mesmos barões travestidos de coronéis.

E sob a autoridade da classe dominante, por mérito, riqueza ou força militar, a Nação submissa aceitou chefes e constituições se sucedendo, deixando marcas imperecíveis na sociedade, nas classes e nos indivíduos.

Inicialmente, as quase imperceptíveis transformações vieram das contradições entre os poderosos, incluída aí a abolição da escravatura. Jamais influenciaram as pontuais e minoritárias vanguardas intelectuais.

A chamada revolução de 30 materializou o descontentamento das classes médias e dos seus representantes no Exército, atores de revoltas nos anos de 1922 e 1924 que desembocaram na Ditadura Vargas. Esta introduziu mudanças reais e concessões corporativas no mundo do trabalho; mas, por outro lado, restabeleceu os poderes locais e regionais apenas com a troca das lideranças.

O golpe militar de 1964 mostrou claramente que a organização das massas é virtual; derrubou as entidades sindicais e populares como pedras de dominó, implantando uma ditadura que se dissolveu pelo cansaço…

Com a “redemocratização” reformou-se o sistema sindical com as mesmas entidades apelegadas, subsistindo à custa de verbas governamentais e atreladas ao poder.  Tenho até medo de escrever – pois politicamente incorreto – que é esta a vileza do povo brasileiro, a sujeição.

A mediocridade reinante sofreu uma pausa e fundou um partido de novo tipo. O anseio pela justiça e liberdade da intelectualidade reacendeu e levou esse partido ao poder. O resultado? Está aí: A ânsia se ser servil levou a liderança sindical a ser absorvida pela burguesia, acomodando-se, igualando-se, e afundando o “tal” partido num lodaçal.

Espelhando esta Nação subalternizada, o Congresso é formado à sua imagem e semelhança; o Poder Judiciário é gêmeo siamês do poder político, e o Executivo é eleito por estelionato eleitoral.

A República Brasileira é o mar onde navegam ainda as três naus portuguesas sob o comando de um Cabral qualquer. A virtual cidadania ainda reflete o alheamento, o descaso e a passividade dos 13 milhões de índios e outros milhões de afro-luso-brasileiros.

Miranda Sá

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