Temos a satisfação – e quase um compromisso – de trazer para os que acessam nosso Blog os textos do jornalista e deputado federal Fernando Gabeira; este artigo, saído hoje na Folha de São Paulo, é primoroso na clareza do estilo e pela lucidez do conteúdo. É a opinião independente da autêntica intelectualidade brasileira. Confira:
Em nome da democracia
Como andam devagar certas coisas no Brasil. A queda de Renan Calheiros parece um longo parto. Isso revela a fragilidade de nossa democracia. Não vou falar, de novo, de casos amorosos e lobistas, notas frias e bois voadores. Qualquer presidente acusado em quatro casos diferentes sai do cargo enquanto o tema é votado. Esse é um procedimento democrático, e sua inexistência indica que o Brasil pode conviver com essa anomalia, indicando, perigosamente, que pode aceitar outras. Renan deveria sair para honrar Alagoas.
O Brasil moderno deve muito a esse Estado. Graciliano Ramos, com seu estilo seco e direto, é um dos credores da gratidão nacional. Não só nos ajudou a espantar os penduricalhos do estilo de seus antecessores como criou personagens e histórias que sobrevivem até hoje. “Vidas Secas” é também uma tragédia de migrantes ambientais, e Baleia, a cadela da história, nos ajuda a ampliar nossa limitada visão antropocêntrica da seca.
Nise da Silveira foi militante política, presa na ditadura Vargas, e muito importante para a psiquiatria brasileira. Ela desenvolveu técnicas de tratamento que valorizam as tendências estéticas dos doentes mentais e nos deixou um grande legado no Museu do Inconsciente. Poderia mencionar o poeta Jorge de Lima, Djavan, outros nomes que mostram que o espaço é pequeno para falar da importância de Alagoas na cultura brasileira.
Renan poderia honrá-la, defendendo-se com unhas e dentes. Mas fora do cargo de presidente. O interessante é que hoje quase todos acham isso. Os apoiadores discretos e até a tropa de choque não o querem mais na presidência. A exceção é Lula. Alguém conseguiu convencê-lo de que o movimento contra Renan é também contra Lula. E que a queda de um tornaria mais vulnerável o outro. Da minha parte, acho uma tese estapafúrdia. Gostaria de ver Lula trabalhando mais e melhor.
A estabilidade no Brasil interessa a todos nós e, numa escala menor, a todo sistema internacional. Acontece que estabilidade pressupõe certa dinâmica. É preciso se antecipar, corrigir constantemente o rumo para que um processo democrático se desenrole melhor. O grande inimigo da estabilidade, num quadro como esse, é quem decide sentar em cima dela. A democracia brasileira tem hoje uma indisfarçável lacuna. O Senado está sem presidente moral.
O corpo do ex-presidente, protegido por seguranças armados de revólveres de choque, passeia pelos corredores e viaja nos jatinhos da FAB. É preciso jogá-lo de novo no fluxo das relações comuns, viajar nos aviões de carreira, sentir, ainda que de longe, o espírito das ruas das metrópoles brasileiras. Renan vive numa bolha. Cedo ou tarde sairá.
Fernando Gabeira, jornalista (assessoria@gabeira.com.br)
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