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Vagos sinos no ar

Não vejo loja nenhuma. Fui burro. Essas coisas são em Tottenham Court Road. No outro extremo de onde fui saltar, ou seja, Marble Arch.

Mas me deu uma vontade de, mesmo com a bengalinha, passar no Brass Rail do Selfridges e pegar um sanduíche que, aqui, é de salt beef e, nos Estados Unidos, corned beef.

Em português do Brasil só sei que não é de lombinho nem de carne assado. É assim… Não, não sei explicar. Nada entendo de receita ou de cozinha. Mal dominei a técnica de sentar-me e bater com o garfo e a faca na mesa quando demoram para me servir. Além do mais, enfio o guardanapo na junção pescoço-camisa e palito os dentes entre um prato e outro.

Satisfeito o desejo, volto à notória rua mais comercial de Londres e preparo-me para enfrentar a turba insana. Afinal, passaram as eleições americanas, cruzou vitorioso a linha de chegada Lewis Hamilton, a noite dos fogos e das fogueiras do dia 5 veio e se foi como um condenado à forca e ao esquartejamento, é mais do que tempo daquelas senhoras aflitas irem às lojas para as compras de Natal. Um prenúncio de bimbalhar de sinos varre, cobre ou saracoteia pelos ares. Mais do que hora de buscar pechinchas ou botar para quebrar com o cartão de crédito do marido.

No entanto… No entanto… Ninguém. Uma Oxford Street vazia como eu nunca vira nessa hora (3 da tarde) do dia (quinta-feira) e do mês (novembro). Um vigarista com sua tramóia montada num caixote levanta e abaixa, muito rápido, três cartas e aposta quanto quiserem que ninguém adivinhará debaixo de qual delas está a bolinha branca. Ninguém adivinhará. Mesmo. Ficaram todos em casa.

Às compras de Natal, acredito que só mesmo os propalados oligarcas russos tenham comparecido. The sea is not for fishes, conforme diz o velho ditado inglês. Só pode ser a recessão, de que tanto falam que finalmente desceu chaminé abaixo e se instalou juntamente com suas renas.

Um pequeno grupo constituído por duas senhoras e três senhores do Exército da Salvação canta um hino vagamente familiar. Paro, apóio-me em minha bengalinha, ouço tudinho e, na hora de passar o chapéu, faço uma cara de espanhol e me mando Oxford Street abaixo. Ou acima. Dependendo do ponto de vista.

Um Natal dickensiano. No sentido do Christmas Carol, o Conto de Natal, aquele do unha de fome do Scrooge. O dinheiro é escasso. No metrô, depois de não conseguir chegar a Tottenham Court Road (enfisema abaixo dos 15 graus é fogo. Ou gelo. Por aí), abro o jornal.

Lá está na página 11, duas pequenas colunas: o Natal vai ser uma miséria. Ao que parece, a granolina disponível para a ocasião baixou em um terço de dois anos para cá. Eu que o diga. Recortei a nota, trouxe para casa e fui conferir tudo no sítio da conversão de dinheiro, que eu adoro, talvez por nunca ter nada para converter em coisa alguma. Lá está e passo adiante o que encontrei. Blim, blom.

A dona ou o dono de casa médios ficaram com apenas 25% do salário mensal para gastar com frivolidades. Frivolidades feito o Natal. Quer dizer, uma vez pagas as contas cada vez mais caras, sobram 1292 reais para torrar.

Há dois anos, sobravam 1830 reais. Uso “real” no mais amplo, vago e etéreo sentido do termo. Só o conheço nessa base. Para mim é libra no lombo mesmo. Dura, difícil, impiedosa. Há que haver alguma compensação para a crise econômica que me aflige a mim e meus vizinhos. Eu olho para eles, eles olham para mim. E lá está escrito em letras de fogo em nossos semblantes natalinos: crise econômica.

O que não impede as sumidades econômicas e comerciais de já terem previsto qual será o presente mais popular neste Natal 2008: o Nokia N96.

Digitei tanto Nokia quanto N96 no sítio de conversões e o danado se fechou em copas. Mais uma prova de que vai mal, vai tudo muito mal.

Onde é que eles estão? Onde é que elas estão? Sumiram todos. Ando, com a dificuldade habitual, por Oxford Street. À procura de uma loja que venda agulha de vitrola e aquele liquidozinho que a gente passa nos LPs. E também uma escovinha para vinil.

Miranda Sá

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Miranda Sá

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