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Carlos Drummond de Andrade

A MESA




E não gostavas de festa.

Ó velho, que festa grande

hoje te faria a gente.

E teus filhos que não bebem

e o que gosta de beber,

em torno da mesa larga,

largavam as tristes dietas,

esqueciam seus tricotes,

e tudo era farra honesta

acabando em confidência.

Ai, velho, ouvirias coisas

de arrepiar teus noventa.

E daí, não te assustávamos,

porque, com riso na boca,

e a média galinha, o vinho

português de boa pinta,

e mais o que alguém faria

de mil coisas naturais

e fartamente poria

em mil terrinas da China,

já logo te insinuávamos

que era tudo brincadeira.

Pois sim. Teu olho cansado,

mas afeito a ler no campo

uma lonjura de léguas,

e na lonjura uma rês

perdida no azul azul,

entrava-nos alma adentro

e via essa lama podre

e com pesar nos fitava

e com ira amaldiçoava

e com doçura perdoava

(perdoar é rito de pais,

quando não seja de amantes).

E, pois, tudo nos perdoando,

por dentro te regalavas

de ter filhos assim. . . Puxa,

grandessíssimos safados,

me saíram bem melhor

que as encomendas. De resto,

filho de peixe. . . Calavas,

com agudo sobrecenho

interrogavas em ti

uma lembrança saudosa

e não de todo remota

e rindo por dentro e vendo

que lançaras uma ponte

dos passos loucos do avô

à incontinência dos netos,

sabendo que toda carne

aspira à degradação,

mas numa via de fogo

e sob um arco sexual,

tossias. Hem, nem, meninos,

não sejam bobos. Meninos?

Uns marmanjos cinqüentões,

calvos, vívidos, usados,

mas resguardando no peito

essa alvura de garoto,

essa fuga para o mato,

essa gula defendida

e o desejo muito simples

de pedir à mãe que cosa,

mais do que nossa camisa,

nossa alma frouxa, rasgada. . .

Ai, grande jantar mineiro

que seria esse. . . Comíamos,

e comer abria fome,

e comida era pretexto.

E nem mesmo precisávamos

ter apetite, que as coisas

deixavam-se espostejar,

e amanhã é que eram elas.

Nunca desdenhe o tutu.

Vá lá mais um torresminho.

E quanto ao peru? Farofa

há de ser acompanhada

de uma boa cachacínha,

não desfazendo em cerveja,

essa grande camarada.

ind’outro dia. . . Comer

guarda tamanha importância

que só o prato revele

o melhor, o mais humano

dos seres em sua treva?

Beber é pois tão sagrado

que só bebido meu mano

me desata seu queixume,

abrindo-me sua palma?

Sorver, papar: que comida

mais cheirosa, mais profunda

no seu tronco luso-árabe,

que a todos nos une em um

que a todos nos une em um

tal centímano glutão,

parlapatão e bonzão!

E nem falta a irmã que foi

mais cedo que os outros e era

rosa de nome e nascera

em dia tal como o de hoje

para enfeitar tua data.

Seu nome sabe a camélia,

e sendo uma rosa-amélia,

flor muito mais delicada

que qualquer das rosas-rosa,

viveu bem mais do que o nome,

porém no íntimo claustrava

a rosa esparsa. A teu lado,

vê: recobrou-se-lhe o viço.

Aqui sentou-se o mais velho.

Tipo do manso, do sonso,

não servia para padre,

amava casos bandalhos;

depois o tempo fez dele

o que faz de qualquer um;

e à medida que envelhece,

vai estranhamente sendo

retraio teu sem ser tu,

de sorte que se o diviso

de repente, sem anúncio,

és tu que me reapareces

noutro velho de sessenta.

Este outro aqui é doutor,

o bacharel da família,

mas suas letras mais doutas

são as escritas no sangue,

ou sobre a casca das árvores.

Sabe o nome da florzinha

e não esquece o da fruta

mais rara que se prepara

num casamento genético,

Mora nele a nostalgia,

citadino, do ar agreste,

e, camponês, do letrado.

Então vira patriarca.

Mais adiante vês aquele

que de ti herdou a, dura

vontade, o duro estoicismo.

Mas, não quis te repetir.

Achou não valer a pena

reproduzir sobre a terra

o que a terra engolirá.

Amou. E ama. E amará.

Só não quer que seu amor

seja uma prisão de dois,

um contrato, entre bocejos

e quatro pés de chinelo.

Feroz a um breve contato,

à segunda vista, seco,

à terceira vista, lhano,

dir-se-ia que ele tem medo

de ser, fatalmente, humano.

Dir-se-ia que ele tem raiva,

mas que mel transcende a raiva,

e que sábios, ardilosos

recursos de se enganar

quanto a si mesmo: exercita

uma força que não sabe

chamar-se, apenas, bondade.

Esta calou-se. Não quis

manter com palavras novas

o colóquio subterrâneo

que num sussurro percorre

a gente mais desatada.

Calou-se, não te aborreças,

Se tanto assim a querias,

algo nela ainda te quer,

à maneira atravessada

que é própria de nosso jeito.

(Não ser feliz tudo explica.)

Bem sei como são penosos

esses lances de família,

e discutir neste instante

seria matar a festa,

matando-te — não se morre

uma só vez, nem de vez.

Restam sempre muitas vidas

para serem consumidas

na razão dos desencontros

de nosso sangue nos corpos

por onde vai dividido.

Ficam sempre muitas mortes

para serem longamente

reencarnadas noutro morto.

Mas estamos todos vivos.

E mais que vivos, alegres.

Estamos todos como éramos

antes de ser, e ninguém

dirá que ficou faltando

algum dos teus. Por exemplo:

ali ao canto da mesa,

não por humilde, talvez

por ser o rei dos vaidosos

e se pelar por incómodas

posições de tipo gaúche,

ali me vês tu. Que tal?

Fica tranquilo: trabalho.

Afinal, a boa. vida

ficou apenas: a vida

(e nem era assim tão boa

e nem se fez muito má).

Pois ele sou eu. Repara:

tenho todos os defeitos

que não farejei em ti

e nem os tenho que tinhas,

quanto mais as qualidades.

Não importa: sou teu filho

com ser uma negativa

maneira de te afirmar.

Lá que brigamos, brigamos,

opa! que não foi brinquedo,

mas os caminhos do amor,

só amor sabe trilhá-los.

Tão ralo prazer te dei,

nenhum, talvez. . . ou senão,

esperança de prazer,

é, pode ser que te desse

a neutra satisfação

de alguém sentir que seu filho,

de tão inútil, seria

sequer um sujeito ruim.

Não sou um sujeito ruim.

Descansa, se o suspeitavas,

mas não sou lá essas coisas.

Alguns afetos recortam

o meu coração chateado.

Se me chateio? demais.

Esse é meu mal. Não herdei

de ti essa balda. Bem,

não me olhes tão longo tempo,

que há muitos a ver ainda.

Há oito. E todos minúsculos,

todos frustrados. Que flora

mais triste fomos achar

para ornamento de mesa!

Qual nada. De tão remotos,

de tão puros e esquecidos

no chão que suga e transforma,

são anjos. Que luminosos!

que raios de amor radiam,

e em meio a vagos cristais,

o cristal deles retine,

reverbera a própria sombra.

São anjos que se dignaram

participar do banquete,

alisar o tamborete,

viver vida de menino.

São anjos. E mal sabias

que um mortal devolve a Deus

algo de sua divina

substância aérea e sensível,

se tem um filho e se o perde.

Conta: quatorze na mesa.

Ou trinta? serão cinquenta,

que sei? se chegam mais outros,

uma carne cada dia

multiplicada, cruzada

a outras carnes de amor.

São cinquenta pecadores,

se pecado é ter nascido

e provar, entre pecados,

os que nos foram legados.

A procissão de teus netos,

alongando-se em bisnetos,

veio pedir tua bênção

e comer de teu jantar.

Repara um pouquinho nesta,

no queixo, no olhar, no gesto,

e na consciência profunda

e na graça menineira,

e dize, depois de tudo,

se não é, entre meus erros,

uma imprevista verdade.

Esta é minha explicação,

meu verso melhor ou único,

meu tudo enchendo meu nada.

Agora a mesa repleta

está maior do que a casa.

Falamos de boca cheia,

xingamo-nos mutuamente,

rimos, ai, de arrebentar,

esquecemos o respeito

terrível, inibidor,

e toda a alegria nossa,

ressecada em tantos negros

bródios comemorativos

(não convém lembrar agora),

os gestos acumulados

de efusão fraterna, atados

(não convém lembrar agora),

as fína-e-meigas palavras

que ditas naquele tempo ,

teriam mudado a vida

(não convém mudar agora),

vem tudo à mesa e se espalha

qual inédita vitualha.

Oh que ceia mais celeste

e que gozo mais do chão!

Quem preparou? que inconteste

vocação de sacrifício

pôs a mesa, teve os filhos?

quem se apagou? quem pagou

a pena deste trabalho?

Quem foi a mão invisível

que traçou este arabesco

de flor em torno ao pudim,

como se traça uma auréola?

quem tem auréola? quem não

a tem, pois que, sendo de ouro,

cuida logo em reparti-la,

e se pensa melhor faz?

quem senta do lado esquerdo,

assim curvada? que branca,

mas que branca mais que branca

tarja de cabelos brancos

retira a cor das laranjas,

anula o pó do café,

cassa o brilho aos serafins?

quem é toda luz e é branca?

Decerto não pressentias

como o branco pode ser

uma tinta mais diversa

da mesma brancura. . . Alvura

elaborada na ausência

de ti, mas ficou perfeita.

concreta, fria, lunar.

Como pode nossa festa

ser de um só que não de dois?

Os dois ora estais reunidos

numa aliança bem maior

que o simples elo da terra.

Estais juntos nesta mesa

de madeira mais de lei

que qualquer lei da república.

Estais acima de nós,

acima deste jantar

para o qual vos convocamos

por muito — enfim — vos querermos

e, amando, nos iludirmos

junto da mesa

vazia.



Carlos Drummond de Andrade

Leia aqui a biografia do poeta.